O erotismo pulsante no sertão: uma leitura de “Dão-Lalalão”
Rita Felix Fortes
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
A dançarina espanhola de Montes Claros
Dança e redança na sala mestiça.[...]
Como rebola as nádegas amarelas!
Cem olhos brasileiros estão seguindo
o balanço doce e mole de suas tetas...
(Carlos Drummond de Andrade)
Considerações iniciais
“Dão-Lalalão (O devente)”, novela que faz parte do livro Noites do sertão e integra a obra Corpo de baile, de João Guimarães Rosa, narra a estória do vaqueiro aposentado Soropita, um famigerado matador de valentões que, ao se apaixonar pela prostituta Doralda, tira-a do bordel, casa-se com ela e se estabelece como fazendeiro. O conflito central da estória circula em torno da contraposição entre amor/pulsão versus preconceito moral, social e racial.
O diálogo com a arcaica estrutura patriarcal – cujo paradigma social não revelado é a obra de Gilberto Freyre[1] – indiscutivelmente subjaz à obra rosiana como um todo. Em “Dão-Lalalão”, fica evidente que os conflitos de Soropita remetem à rígida moral patriarcal, que, por sua vez, respalda-se na persistência de arquétipos imemoriais, segundo os quais há vários tipos de mulheres para diferentes funções sociais. Estes arquétipos remetem, por exemplo, aos diretos do cidadão na cultura helênica.
Na Grécia, três tipos de mulheres diferentes ocupavam-se do dono da casa cidadão: a esposa nascida na Cidade, providenciadora de filhos na castidade e na fidelidade, a concubina, que se ocupava do bem-estar quotidiano do corpo, e a hetera ou a prostitua, de alto vôo ou não, que se encarregava do prazer sexual (Héritier, 2002: 201).
Partindo desses arquétipos primordiais, objetiva-se analisar como Guimarães Rosa, em “Dão-Lalalão” se atém à temática do erotismo e da condição social masculina e feminina, cujos lastros, perpetuados ao longo do tempo, remetem à civilização grega e ao patriarcalismo judaico. Mas, além do diálogo com essa tradição imemorial, é indiscutível que Guimarães Rosa também dialoga de forma contundente com a formação da sociedade patriarcal rural brasileira, cujo paradoxal conservadorismo se manteve ao longo do tempo no espaço isolado do sertão. Ao se ater aos conflitos advindos desse conservadorismo, Guimarães Rosa também desvela uma vasta gama de autênticos sentimentos humanos que, ao mesmo tempo em que conflitam, reiteram as normas e os valores morais e sociais vigentes.
O que mantém o desejo?
Soropita, o protagonista de “Dão-Lalalão”, antes de conhecer a prostituta Doralda em um bordel, já havia ouvido um boiadeiro descrevê-la como “um derrame de delícia. É uma cuia de água limpa...”. (D.L: 844)[2]. “Derrame de delícia” remete ao Cântico dos cânticos (4: 11): “Teus lábios são favo escorrendo / ó noiva minha, / tens leite e mel sob a língua, / e o perfume de tuas roupas / é como a fragrância do Líbano”, e “cuia de água limpa”, fazendo remissão ao valor fundamental da água – ainda mais límpida e singelamente servida em uma cuia – é, indiscutivelmente, uma metáfora de Doralda como fonte primordial de erotismo e prazer. Em relação à comparação destas duas imagens vale, ainda, destacar a capacidade de Guimarães Rosa de colocar lado a lado uma imagem que remete ao Cântico dos cânticos – portanto, das tradições mais universais – e uma que remete ao que há de mais singelo e local: a cuia de água limpa.
No segundo encontro com Doralda, Soropita convida-a para ir embora com ele, o que ela prontamente aceita. Eles se casam e vivem enlevados. Portanto, aparentemente – ao contrário, por exemplo, de Riobaldo, em Grande sertão: veredas –, Soropita rompe sem conflito a barreia simbólica que separaria a esposa/concubina da hetera, mesclando com naturalidade as três em uma mesma mulher. Entretanto, coerentemente com o tradicionalismo da sociedade patriarcal – cujos arquétipos ainda guardariam fortes marcas da imemorial oposição entre os papéis sociais masculinos e femininos –, a opção de Soropita pelo amor e pelo desejo não implica ruptura com os preconceitos vigentes no sertão.
Ao “tirar” uma prostituta do bordel e casar-se com ela, Soropita dá vazão à pulsão erótica, mas também converte a busca pela satisfação em estabilidade afetiva. Mais do que isso, ele tem na mesma mulher a ordem familiar e a desordem e, por isso, sua pulsão sexual continua plena e sem a corrosão cotidiana implícita aos casamentos tradicionais. Ou seja, sob muitos aspectos, o relacionamento com Doralda seria o ideal, visto não sucumbir ao desgaste de que fala Bataille a propósito do casamento:
A vida carnal teria sido pobre, vizinha à monotonia do animal, se nunca se tivesse realizado com bastante liberdade, atendendo a caprichos bem pessoais. Se é verdade que o hábito libera, podemos dizer em que medida uma vida feliz não prolonga o que foi provocado a partir de um estado de excitação, o que foi posto à luz a partir de uma situação anômala. O próprio hábito é tributário da liberação mais intensa que dependeu da desordem e da infração. Assim, amor profundo que o casamento não paralisa em nenhuma hipótese seria acessível sem o contágio dos amores ilícitos que tiveram unicamente o poder de dar ao amor o que ele tem de mais forte que a lei? (Bataille, 1987: 104.5).
Mas, a motivação primeira, indiscutivelmente, é a pulsão sexual no que ela tem de contraposição e enfretamento em relação à rígida moral patriarcal que separa e classifica cada tipo de mulher. Ao conhecer Doralda, Soropita, acometido de uma intensa pulsão, percebe que, para a prostituta, também ele fora mais que um cliente corriqueiro:
Gostara tanto, meu Deus! E então, para mais depressa ele se perder, ela não quis aceitar dinheiro em face, era a primeira vez que acontecia isso sucedido: – “Não me põe paga, de jeito nenhum, Bem. Você me despertou muito. Você é demais.” Saíra desexato dali, nos densos de não pensar noutra coisa. (D.L: 844).
Dando vazão a tal pulsão, Soropita, na manhã seguinte – já que na mesma noite, quando volta a procurá-la, ela está com outro cliente – retorna ao bordel e propõe que ela vá embora com ele.
Carlos Drummond de Andrade, a propósito da carência sexual no contexto provinciano do início do século XX, tematiza a intensidade da pulsão masculina no poema “A puta”: “Quero conhecer a puta. / A puta da cidade. A única. A fornecedora...”. (Andrade, 1992: 557). Este impulso ao qual alude o poeta, embora se refira a um adolescente, é da mesma natureza daquele que faz Soropita, imediatamente após o primeiro encontro com Doralda, propor-lhe que ela deixe o bordel e vá embora com ele. “– ‘Você quer vir viver só comigo?...’ Doralda, a mulher mais singular. – ‘Pois quero. Vou demais’ – a ela respondeu num vivo de pronta, nem sabia se ele era bom ou ruim, remediado ou pobre, nem constava o nome dele.” (D.L: 844-5). Este impulso inicial, fundamentado na imediata e intensa atração, mantém-se e eles se casam “– no religioso e no civil, tinha as alianças, as certidões. Se prezava...” (D.L: 814).
Então, a prostituta é alçada à condição de esposa honesta, dona-de-casa eficiente, companheira zelosa e, principalmente, uma amante capaz de manter intensamente acesa a chama do desejo – recorrendo, inclusive, às suas experiências profissionais. Portanto, ela conjugaria em si a esposa, a concubina e a prostituta, a que tinham direito os cidadãos gregos. “Aí nua estava. Deixava só o colar. Sorria sendo, no meio do quarto. Com as mãos, escorregou, se sentindo os seios, a dureza. [...] – Até o nome de Doralda, parece que dá um prazo de perfume...” (D.L: 853). Mas, se tudo é tão perfeito, onde está o contágio dos amores ilícitos que tiveram unicamente o poder de dar ao amor o que ele tem de mais forte que a lei? O que mantém em Soroptita o sentimento de transgressão, fazendo com que seu casamento com Doralda não perca o elã nem arrefeça a excitação inicial?
O que há de excitante, e que mantém Soropita alerta, reiterando o sentimento transgressor, não se deve à sua relação íntima e familiar com a mulher – esta é perfeitamente harmônica, além de intensamente erótica e prazerosa –, mas sim à moral patriarcal com a qual, paradoxalmente, Soropita comunga e à qual, aparentemente, afrontara casando-se com uma prostituta. O temor de que alguém possa ter conhecido Doralda em algum bordel, ou ter sido seu cliente, assombra Soropita e torna esta harmonia simultaneamente excitante e periclitante. Ou seja, o mundo, para além dos limites da fazenda, é uma ameaça constante à sua paz. Pois, além de Soropita prezar muito sua respeitabilidade, quando pressionado, é acometido de surtos incontroláveis de fúria que acabam na morte de seus oponentes: os mais famigerados matadores e valentões de toda a região.
Apesar de todo o amor, vir a público que ele se casara com uma prostituta macularia sua respeitabilidade de valentão, mas, principalmente, a de filho de “família boa, homem que herdou. Com regular dinheiro, junto com seus aforros:” (D.L: 114-15). Ou seja, ele não é um camumbembe sem eira nem beira, originário daquela “massa anônima de degradados socialmente” (Antonio Candido, 1951: 10) que grassava pelo sertão. A despeito de ter retirado uma prostituta do bordel e se casado com ela, ele não rompeu com os valores e com a rigidez da moral patriarcal. Como afirma Gilberto Freyre:
mais depressa nos libertamos, os brasileiros, dos preconceitos de raça do que dos de sexo. [...] Os tabus do sexo foram os mais persistentes [...] Belo sexo. Sexo doméstico. Sexo mantido em situação toda artificial para regalo e conveniência do homem, dominador exclusivo dessa sociedade meio morta.”. (Freyre, 1951: 309-10, v. 1).
A questão da dupla moral patriarcal, indiscutivelmente, é a base na qual se sustenta “Dão-Lalaão”. Se a vida conjugal e, principalmente, sexual de Soropita é um jardim de delícias, para além da fazenda há a sociedade pronta para julgá-lo e para condenar sua ousadia e transgressão de trazer para o espaço “sagrado” da casa uma mulher cuja trajetória deveria ser mantida no espaço profano da rua. Conforme Roberto DaMatta, o brasileiro – quando o tema é sexo – tende a ser ousado na rua e conservador em casa. “O sistema brasileiro é um modo complexo de estabelecer e até de propor uma relação permanente e forte entre a casa e a rua, entre ‘este mundo’ e o ‘outro mundo’ ”. (DaMatta, 1991: 67).
Portanto, o drama de Soropita é conciliar sua vida pessoal, feliz e erotizada, cujas raízes remetem à rua e ao bordel, com seu ranço patriarcal conservador. Ou seja, Guimarães Rosa, indiscutivelmente, parte da dupla moral patriarcal, e, ao fazê-lo, discute como as transgressões à rigidez imposta são a fonte de excitação. Entretanto, paradoxalmente, é o moralismo de Soropita, bem como seu temor de que venha à tona o passado de Doralda, que realimentam o elã da vida conjugal, pautada na afronta aos valores vigentes, com os quais ele compactua.
Do bordel ao lar
“Dão-Lalalão”, ao mesmo tempo em que aponta para o enlevo de Soropita e Doralda, indica que não há uma ruptura profunda em relação às normas sociais vigentes. Pelo contrário, ao “retirar” Doralda do bordel, Soropita toma uma série de precauções para que isso não venha a público.
[...] embarcou para Corinto, para espera. Tudo muito escondido [...] “Garanhã” [um dos apelidos de Doralda no bordel] são suas filhas, suas mães! – quem repetisse, alguma vez, conseguia dar a vida por terminada... Nem coberta de ouro e nas riquezas de todo maior conforto, até à velhice [...] Doralda ainda não estava com prêmio de paga pelos sofrimentos e vergonheiras que tinha tido de passar [...] concedia ao cio dos sujeitos, até de uns como aquele Sabarás... (D.L: 845).
Os devaneios alucinados de Soropita – provocados pela visita de Dalberto e pelo temor de que ele já conhecesse Doralda – revelam como ele mantém entranhados os valores patriarcais vigentes, já que fica profundamente perturbado com a possibilidade de seu amigo e sua mulher já se conhecerem.
Este moralismo, associado ao ciúme pelo passado de sua mulher, faz com que a pressão resultante da presença de Dalberto provoque em Soropita – sempre dado a fantasias exageradas – alucinações eróticas dignas de Sade. “Doralda vinha montada numa mula vermelha, se sentar nua na beira das águas da Lagoa da Laóla, ela estava bêbada; e em volta aqueles sujeitos valentões, todos mortos, ele Soropita aqueles corpos não queria ver...” (D.L: 847). Ou seja, ele mescla as lembranças dos valentões que matara ao seu medo de que venha à tona que Doralda fora prostituta. Subjazem a esses delírios suas fantasias sobre o que teria feito sua mulher quando era prostituta e, então, compõe um bacanal macabro, no qual se mesclam o erotismo da mulher, sua violência e a sombra de “seus” mortos.
Nessas fantasias, Doralda gosta das situações orgiáticas e ele se enfurece imaginando os antigos clientes da mulher. Estes, sintomaticamente, chamavam-na – dentre outros nomes – de garanhã. Soropita imagina-se retrucando que garanhãs seriam as filhas e as mães de tais clientes, visto não haver ofensa maior que aquela dirigida à honra da mãe, da esposa e das filhas. Pela razão óbvia, ele não diz que garanhãs são, também, as mulheres dos clientes de Doralda, já que esta classificação se aplica a ela. Ao dirigir ofensas e ameaças mentais a todos os homens com os quais Doralda estivera, aflora sua raiva pelo passado da mulher, bem como o risco que estes antigos clientes correriam se cruzassem o caminho de Soropita: sempre sujeito a surtos incontroláveis, que terminam em morte.
Em oposição à raiva pelos clientes, ele é extremamente condescendente com a esposa e passa a imaginar todo o sofrimento de Doralda, tendo que se submeter à aviltante condição de ser desfrutada pelos homens. Em sua fantasia, tais aviltamentos deveriam ser minimizados através de uma vida confortável e feliz.
Entretanto, quando se contrapõe os devaneios de Soropita em relação às agruras e humilhações sofridas pela mulher à postura desta em relação à prostituição, muda a perspectiva. A fala de Doralda evidencia que ela, com a mesma inteireza de caráter com que se dedicara ao marido e assumira sua condição social de respeitável senhora casada, dedicara-se, também, à prostituição. É em tom de orgulho – mas sem afronta – que ela diz que fora muito apreciada como prostituta. “Aí [no último bordel] eu era muito freguesada. Bem, era uma das que eles apreciavam mais... [...] Mas uma coisa posso dizer, Bem: quem ia comigo uma vez, sempre que podia voltava... Nunca fizeram pouco de mim. Diziam que eu tinha condão...” (D.L: 853-4). Soropita é a prova mais contundente dessas afirmações de Doralda: bastou estar com ela uma vez para ficar enviscado para sempre.
Um dos momentos mais delicados de “Dão-Lalalão” é quando Soropita, perturbado pelo passado da mulher e pela visita do antigo companheiro de comitiva, fantasia a mulher não só participando do macabro bacanal acima transcrito, mas também se expondo diante de Dalberto. Instaura-se aí uma grande tensão no conto. Se, no delírio acima, aqueles que poderiam usufruir de Doralda já estão mortos e, portanto, não mais oferecem risco, na fantasia presente, Doralda e Dalberto estão concretamente expostos.
Participando do sugestivo nome da mula de Dalberto – Moça-Branca –, que a Soropita parece uma alusão a Doralda, a narrativa torna-se periclitante, como a pletora que precede a violência orgiástica.
– “Eu é que sou a moça branca dele...” Soropita em soberbas se alegrando: de ver a que ponto Doralda queria que o Dalberto notasse o quanto ela dele e ele dela se gostavam. [...] E de repente tudo corria o perigo forte de se desandar e misturar [...] no caso de um mingau latejante o mundo parava. (D.L: 848).
A citação acima reproduz um momento de intensa tensão, no qual a violência sempre latente em Soropita está prestes a explodir. Ou seja, o moralismo e o ciúme de Soropita, associado à sua tendência para o delírio e ao seu impulso inato para a violência, permeia todo o ambiente, modulado pela luz bruxuleante do lampião. O leitor atento prende o fôlego, excitado e temeroso pela cena de terror que antevê. Esta tensão remete à orgia, cuja origem advém dos “interditos que se opunham à liberdade da violência assassina ou da violência sexual. Esses interditos determinam inevitavelmente o movimento explosivo da transgressão” (Bataille, 1987: 108). Apesar de nada ter sido dito, nem qualquer gesto de Soropita denunciar seu estado psíquico, quando ele volta à realidade tanto Dalberto quanto Doralda sentem, instintivamente, a grande tensão do ambiente e intuem que, inexplicavelmente, algo aterrador se passara.
E estavam eles três, ali vestidos, corretos na sala, o lampião trabalhando sua luz quente, eles três calados, espaço de um momento, eram como não eram, só o ar de cada um, [...] “– Me deixa ir coar mais café, Bem...” Doralda saiu. Ela estava desinquieta? E nisso Dalberto restava macambúzio, tristonho. Soropita não entendia de si nem de ninguém, como o coração dele batia. “- Surupita, o que você falou... Hã, você acha que eu acertava em me casar com a Analma, o que você pensou, no caminho, que me disse?...” Dando o Dalberto com uma espécie de suspiro, e aquilo falado. Quando que quando, a mão de Soropita apalpara a coronha. O Dalberto nem notou. (D.L: 848).
Subjacente ao encantamento de Soropita por Doralda, há nele a intolerável certeza – reiterada por ela – de que, assim como ele, todos os homens desejam se apossar dela. De acordo com Bataille (1987: 135): “Se a beleza, cujo acabamento rejeita a animalidade, é apaixonadamente desejada, é porque nela a posse conduz à conspurcação animal. Nós a desejamos para maculá-la, para sentir o prazer de que estamos profanando-a”. Dalberto, ao descrever seu encanto pela prostituta que ele deseja desposar, leva, novamente, Soropita a fantasiar. Ele imagina a beleza e os encantos de tal mulher. Ato contínuo – se ele fantasia com a mulher do amigo que nem conhece, o que dizer de Dalberto em relação a Doralda, ali presente –, ele passa a fantasiar Doralda sendo conspurcada por Dalberto. “Como se, agora por agora, Doralda não vinha, ele Soropita ia ver, ela estava no quarto do Dalberto, na cama, já toda sem roupa, estava de todo o ponto esperando mengável...” (D.L: 850). Mais uma vez, ele projeta no amigo suas fantasias.
Após se recolherem, Soropita, pela primeira vez, traz à tona o passado de Doralda. Ao ser indagada, ela responde com certo orgulho, sem pejo, nem drama. Afinal, foram seus atributos como prostituta que enredaram Soropita e fizeram com que ele, num impulso, levasse-a do bordel, casasse com ela e levasse uma vida estável e intensamente erótica. Entretanto, a despeito, inclusive, de a vida ser tão boa exatamente por Doralda ter sido uma prostituta experiente e talentosa, Soropita não se liberta das rígidas regras da moral patriarcal.
Guimarães Rosa, ao tematizar tais conflitos, tanto mais humanos quanto contraditórios, fá-lo em profundidade. Por isso, a sensualidade de Doralda, ao mesmo tempo que perturba, alucina e encanta: ela é, simultaneamente, seu veneno e seu antídoto.
Entretanto, para além do perigoso jogo erótico do casal, há, também, a imposição das regras e normas institucionalizadas. Ela encontra no marido o buscado não só pelas mocinhas românticas, como também pela maioria das mulheres, inclusive pelas prostitutas na sociedade advinda do patriarcalimso decadente, isto é, amor, erotismo, carinho, estabilidade e ruptura com a vida passada – que ela apreciava – mas, também, proteção em relação aos outros homens. É por isso, inclusive, que ela se sente tão ancha da condição de senhora. De acordo com Héritier (2002: 204):
[a] legitimidade exclusiva e absoluta da pulsão masculina para se satisfazer tem por corolário ou, inversamente, nasce da certeza de que qualquer corpo de mulher não protegido por um homem é oferecido e de fácil acesso e que estes corpos apropriados para a satisfação imediata estão destituídos de qualquer valor.
Evidencia-se na fala de Doralda que, a partir do momento em que foi “resgatada” do bordel – sem ser subserviente – ela delega a Soropita plenos poderes sobre si, como atesta a seguinte fala: “– Um dia eu deixar de gostar de você, Bem, tu me mata?’ [ela intuíra o perigo que acabara de correr?, conforme análise acima] [...] você é meu dono, macho... Eu precisar, tu pode dar em mim.” (D.L: 812). A pergunta com a qual inicia a citação revela que Doralda parte do consenso de que o marido ou amante, ou seja, o “dono”, ao ser rejeitado, tende a eliminar o “objeto” de rejeição[3]. Além de Doralda reiterar o poder de Soropita como seu dono, ela explicita que este advém, primeiramente, pelo fato de ele ser macho, o que lhe dá o direito de puni-la se, por acaso, ela cometer alguma falta ou transgressão. Ou seja, é gritante como Doralda, apesar de ser uma prostituta escolada – ou talvez por isso – coloca-se inteiramente à mercê de Soropita, seu marido, seu dono e, principalmente, seu macho.
O que explicaria tamanha submissão? A primeira e mais evidente explicação é que, apesar de transgredir os valores morais da rígida sociedade patriarcal, Doralda é parte desta sociedade e, portanto – a despeito de ser transgressora –, é formada por ela e compactua com os valores vigentes.[4] Apesar de ter sido “bem sucedida” como prostituta e de não lamentar sua sorte, ela também partilha dos preconceitos sociais e morais a respeito da sua antiga condição de mulher pública e, por isso, acha cabível
a condenação moral e a social rejeição social [que] são para as mulheres sem defesa que não puderam ou não souberam afastar delas a avidez masculina, não para o homem. Elas são consideradas responsáveis pela sua situação em relação à dita natural normalidade que caracterizariam as suas próprias pulsões, nisso diferentes das pulsões masculinas. (Héritier, 2002: 204).
Mesmo depois de casada – portanto, de alçada à condição de uma respeitável senhora –, ela delega ao marido o poder de puni-la fisicamente, poder este inerente à condição de macho que, contrapondo-se à condição da fêmea, teria maior discernimento entre o que é certo e o que é errado.
A propósito da complexa contraposição entre a esposa e a prostituta, vale destacar, ainda, que Dalberto, assim como Soropita, apaixonara-se por uma mulher que desgostara do marido, separara-se dele e se tornara prostituta. Dalberto, ao contrário de Soropita – que não fala do passado de Doralda – confidencia ao amigo seu desejo de morar com tal mulher para juntos constituírem família. Também nesta situação, o grande conflito é como conciliar prostituta, esposa e mãe. Soropita fantasiara que Dalberto diria que “Casar com meretriz ? É virada! Nem puxado por sete junta de bois... Sei que uns fazem; pior p’ra o caráter deles...” (D.L: 835), o que também se aplicaria a ele e não somente ao amigo.
Entretanto, Dalberto, ao contrário das elucubrações de Soropita, confessa seu desejo de ir morar com a amante e constituir família.
Ah, Surupita, de confessar eu não purgo soberba nem vexames: eu gosto dela, entendidamente. Azo que estou certo, coração me conta, que ela também em um amor gosta de mim. [...] Com ela viver vida regrada, a sossegada vidinha, pelo direito, esquecidos do passado todo... O bom, a gente ter filhos, uns três ou dois... Filho tapa os vícios... (D.L: 849-51).
Embora a visita de Dalberto não implique consequências mais trágicas, ela é o pretexto em função do qual se organiza a discussão a respeito de erotismo, preconceito, devaneio e violência.
Não macule moça branca!
Outro aspecto evidente, que reitera o diálogo de Guimarães Rosa tanto com a obra de Gilberto Freyre quando com a tradicional família patriarcal, refere-se à dupla moral sexual, associada ao preconceito racial que vigorou ao longo de todo o período patriarcal.
Sintomaticamente, o nome da montaria de Dalberto – Moça-Branca –, além da indiscutível alusão à zoofilia, tão condenável quanto recorrente no meio rural, é uma acintosa transgressão, pois é uma referência à conspurcação das moças brancas, ou seja, das filhas das abonadas famílias econômica e socialmente bem estabelecidas. Estas, usualmente, só seriam acessíveis via casamento, visto serem violentamente “protegidas”, como exemplificam os poemas “Orion” e “Serenata” (Andrade, 1992: 581-608).
Ao contrário das moças brancas, as negras e mulatas estariam expostas à luxúria dos sinhôs e sinhozinhos ao longo da formação da escravista sociedade brasileira, como atesta o poema “Tentativa”, também de Carlos Drummond de Andrade. “Uma negrinha não apetecível / é tudo quanto tenho a meu alcance / para provar o primeiro gosto / da primeira mulher” (Andrade, 1992: 558). Ou, ainda, o poema “Engate”, do mesmo autor. “O morto no sobrado / no porão a mulata / a pausa no velório / [...] a pressa de engatar / o sentido da morte / na cor do teu desejo...” (Andrade, 1992: 687).
A contraposição entre onde deveriam se situar as mulheres brancas, disponíveis, apenas via casamento, aos homens “de família boa, que herdou” (D.L: 814), como Soropita, e as mulheres sem eira nem beira, é outro aspecto abordado magistralmente por Guimarães Rosa nesta novela. Ou seja, Soropita, um vaqueiro bem estabelecido e “de boa família”, e, ainda mais, um valentão renomado e temido, orgulha-se de ser “família”, isto é, de integrar “a história da família brasileira [que] durante os últimos 150 anos consistia essencialmente em séries ininterruptas de restrições sobre suas funções econômicas e políticas, e na concentração das funções mais específicas da família [...] de procriação e disciplina do impulso sexual” (Antonio Candido, 1951: 11).
O passado de Doralda, além de ter enredado e encantado Soropita, também o assombra e o faz temer qualquer presença estranha ao seu reduzido círculo. Entretanto, há um aspecto deste passado que o atormenta ainda mais e com o qual ele não consegue conviver: o fato de Doralda ter tido clientes negros. Inicialmente, pode parecer ao leitor que tal relutância se deva ao fato de Soropita, quando foi ao bordel propor a Doralda ir viver com ele, ter de aguardar que ela acabasse a função com o último cliente, um negro. Portanto, no seu delírio, tal cliente já seria traição, visto que ele já havia decidido que daquele momento em diante Doralda seria somente sua. “Mas foi o chofre: ela desaparecida, no quarto, ocupada, fechada com outro [...]. ‘Está com o Sabarás...’ Sabarás era pessoa de cor, não conhecia, disseram ser um boiadeiro negro” (D.L: 854).
Entretanto, sua especial aversão pelos antigos clientes negros de Doralda é muito mais profunda e remete à mentalidade colonial brasileira, na qual, desde o início, tanto as índias quando as negras foram alvo da constante luxuria do colonizador. Em contraposição, sempre foi motivo de escândalo e horror os casos esporádicos de mulheres brancas se envolverem com negros e mulatos. Nestes casos, usualmente, as punições eram exemplares. Gilberto Freyre transcreve a observação de M. Bonfim, segundo o qual, no caso de alguma moça branca envolver-se sexualmente com um escravo negro ou mulato, então, “intervém a moral paterna: castra-se com uma faca mal-afiada o negro ou mulato, salga-se a ferida, enterram-no vivo depois.” (Freyre, 1983: 339).
Esta dupla moral distendeu-se ao longo do tempo, e as famílias tradicionais, até o final do século XIX, achavam menos trágico a morte de uma filha à mácula do sangue negro mesclar-se ao de suas filhas brancas, ao mesmo tempo em que os filhos geravam muleques nas senzalas. Tal situação é tematizada, por exemplo, no romance O mulato, de Aloísio de Azevedo, como já o fora – de outra perspectiva – por Gonçalves Dias, no poema “Marabá”. M. Bonfim narra que, em viagem a Sabará, Minas Gerais, “mostraram-lhe no fundo do quintal de uma velha casa-grande dos tempos coloniais o lugar em que teria sido supliciado um escravo por ter sido surpreendido em relações com uma moça branca” (Freyre, 1983: 401). Portanto, é indiscutível que Guimarães Rosa, ao descrever a repulsa de Soropita pelo fato de Doralda se prestar a atender aos negros, está dialogando com a tradição rural patriarcal, bem como com Gilberto Freyre. O nome do último cliente de Doralda é Sabarás, assim como o nome da cidade mineira onde teria sido supliciado o negro que conspurcou uma moça branca. Seria uma coincidência?
Soropita, imediatamente após rememorar sua ida ao bordel para buscar Doralda – quando teve de aguardar que ela terminasse de atender Sabarás –, volta a condenar mentalmente Dalberto pela ousadia do nome de sua mula: “refestelado, comido e bebido, e com cama aprontada, e senhor de pensar ofensas, de certo tirando côo de seu prazer maior... Malícias – que a mula dele se chamava Moça-Branca, não tinha o direito!” (D.L: 845), ou seja, nem mesmo o nome “moça branca”, – “pura” ou não – deve ser aviltado.
Se Soropita, eventualmente, irrita-se e ofende mentalmente os antigos clientes de Doralda, ao pensar no Sabarás ele é tomado pelo ódio. Exacerbado pelo ciúme e pelos delírios acionados pela presença de Dalberto, mesclam-se em sua fantasia a ousadia do nome da mula, a lembrança de Doralda atendendo Sabarás e sua aversão imediata por Iládio – negro que integra a comitiva de Dalberto. Então, ele, pela primeira vez, alude ao passado de sua mulher. “– Mas você, você gostava! [da função de prostituta] – ‘Gostava uai. Não gostasse, eu não estava lá...’ [...] ‘Mas você, não sente falta daquela vida de dama?... – ‘Nenhuma, Bem, com você não sinto perda de regozijos nenhuns...” (D.L: 855). A citação revela que Doralda fora prostituta por vocação – ou seja, ela tinha o dom – e que ela se regozijava disso. Mas, Soropita, ao aludir ao passado da mulher, tem como principal objetivo saber se ela tivera um cliente chamado Iládio, bem como saber por que movido ela se submetera a aceitar negros como clientes. Ou seja, perturba-o mais que ela tenha exercido suas funções também com negros do que ela tivesse grande prazer em se prostituir, embora ela afirme que, até conhecê-lo, nunca se envolvera afetivamente com nenhum cliente: “Bem, eu gostava por serem homens, só.” (D.L: 855).
A ideia de Doralda na cama com negros obseda de tal forma Soropita que, ao encontrar o negro Iládio, devota-lhe um profundo ódio, como se ele, Iládio, sintetizasse toda a conspurcação das moças brancas em geral, e Doralda em especial.
“Com o preto Iládio, você esteve?” “– Iládio... Iládio... Nunca vi branco nem preto nenhum com esse nome.” [...] “Mas tu esteve com pretos? Teve essa coragem”- “Mas, Bem, preto é gente como os outros, também não são filhos de Deus?...”- “Quem era aquele preto Sabarás?” “– Ah, esse um teve. Vinha, às vezes...” “Mas, tu é boa, correta, Doralda... Como é possível? Como foi possível? ... [...] Então, como foi possível?” (D.L: 855).
Comparando-se as citações de Gilberto Freyre sobre os interditos impostos aos negros em relação às mulheres brancas e vice-versa, fica evidente o diálogo de Guimarães Rosa com esta tradição. Entretanto, em “Dão-Lalalão”, esta perspectiva se aplica, apenas, a Soropita, não a Doralda, de quem não se tem nenhuma informação sobre sua origem, ao contrário de Soropita, que era de “boa família”. Da perspectiva de Doralda, não há qualquer traço de preconceito e, quando questionada, ela limita-se a perguntar “– Mas Bem, preto é gente como os outros, também não são filhos de Deus?...” (D.L: 855).
Soropita, reiterando seu preconceito, “aceita” que Doralda gostasse de ser prostituta: afinal, foi sua eficiência em tal função que o seduzira. Em relação a isso, além dos delírios já analisados, ele se preocupa, apenas, em saber se ela sente falta da vida de prostituta. Mas ela, enfaticamente, afirma que não, e ele se dá por satisfeito. Entretanto, o mesmo não se aplica em relação ao fato de ela ter aceitado também os negros, e ele insiste nesta questão: “Mas, tu é boa, correta, Doralda... Como é possível? Como foi possível?... [...] Então, como foi possível?”. Como ela não tem resposta, já que não está imbuída desse preconceito, ela limita-se a encerrar a conversa dizendo: “Agora deixa eu te beijar, tu esbarra de falar tanta coisa...” (D.L: 855). Ou seja, é pela sedução que ela sai de tal embaraço e declina de responder novamente o que já estava dito claramente, e que Soropita não pode aceitar nem entender. A narrativa se atém, então, à descrição da sensualidade de Doralda, o que justifica o fato de que ele, no primeiro encontro, “gostara tanto, meu Deus!”.
No dia seguinte à visita de Dalberto, os companheiros de comitiva de Dalberto passam pela casa de Soropita para seguirem viagem. É neste momento que, ao fechar a narrativa, Guimarães Rosa, ao arrematar o perfil do protagonista Soropita, retoma o tema do preconceito entranhado na sociedade rural, ainda marcada pela prepotência, pela escravidão e por um difuso sentimento de distinção.
A repulsa inicial de Soropita por Iládio, na manhã seguinte, depois de uma noite cheia de fantasias, delírios e revelações sobre o passado de Doralda, converte-se em um profundo e incontrolável ódio. Este é outro momento de enorme tensão narrativa, e a violência, ao contrário da imaginada na noite anterior, por ser dirigida ao negro, não se restringe à dimensão da fantasia, mas converte-se em ação.
A primeira preocupação, quando o grupo passa pela casa, de surpresa, é que alguém conheça Doralda, mas ela tranquiliza o marido. “‘Ah não fica atenazado, Bem, nenhum desses homens eu nunca que não vi... Nenhum deles me conhece...’”. (D.L: 859). Entretanto, o ódio incontido de Soropita é todo canalizado para o negro Iládio, o qual, inclusive, aos seus olhos, é dissonante em relação aos demais, descritos como “solertes rapazes.” (D.L: 859). “E o preto Iládio, o negralhaz [...] – para que precisava de espingarda? Truxo o olhando de riba, com aquela bruta perfilência que grolou: – ‘Eh Surripita!..’ ” (D.L: 859-60). Este é um momento que demanda especial atenção do leitor. No dia anterior, Iládio já havia demonstrado sua admiração pelo famigerado Soropita, o matador de valentões, e aqui, novamente, percebe-se sua alegria e admiração. Entretanto, no delírio de Soropita, isso é uma ofensa e uma ousadia.
A seguir, em um longo trecho, a narrativa se atém aos delírios de Soropita, ao longo dos quais subjazem todos os seus valores, os quais, delirantemente, ele sente que foram aviltados pelo negro; inclusive, fantasia que Doralda lhe perderá o respeito por ele ser um frouxo. Alucinado, ele se arma e vai atrás de Iládio, vingar-se das ofensas imaginárias. A cena seguinte é, de certa forma, a síntese de toda a história de violência de Soropita e de como ele matara seus oponentes aludidos na estória. Entretanto, ela é, também, mais abrangente, visto situar, de acordo com as trágicas heranças patriarcais, onde deveriam se enquadrar os negros em relação aos brancos. Ou seja, além da trama propriamente dita, Guimarães Rosa revela com sensibilidade e delicadeza os aspectos mais cruéis do preconceito disfarçado que, apesar de ir longe a escravidão, ainda se perpetraram ao longo do tempo e estes foram – ou ainda são? – ainda mais tenazes entre os “homens de boa família”, aos quais se destinam as moças brancas.
Soropita, enlouquecido de ódio – de fato por Sabarás, que, em suas fantasias fizera dele um Quim corno –, intercepta o grupo decidido a lavar sua honra com o sangue do Iládio.
Riscou. Um azonzo – revólver na mão, revólver na mão. O preto Iládio, belzebu, seu enxofre, poderoso amontoado na besta preta. Ah, negro, vai tapar os caldeirões do inferno! Tu, preto, atrás de pobre de mulher, cheiro de macaco... – Apeia, negro, se tu não tem caráter! Eu te soflagro!... Ele declarou. Mas o preto Iládio exclamava, enorme – um grito de perdão! – rolava de besta abaixo, se ajoelhava: – Tou morto, tou morto patrão Surrupita, mas peço que não me mate pelo ventre de Deus, anjo de Deus, não me mata... Não fiz nada! Não fiz nada!... Tomo benção... Tomo benção... [...] Mas o preto Iládio deitado na poeira açapado – cobra urutu desquebrada – tremia de mãos e pernas. “Tu é besta, seô! Losna! Trepa em tua mula e desenvolve daqui...” – Soropita comandava aquele grande escravo aos pés de seu cavalo. Igual a um pensamento mau, o preto se sumia, por mil anos. (D.L: 862).
Além do surto de “privação de sentidos”, provocado pelo ciúme advindo das ofensas imaginárias de Iládio – leia-se Sabarás e todos os eventuais clientes negros de Doralda -, há na citação acima uma indiscutível alusão ao ranço patriarcal escravista que perdurou ao longo da primeira metade do século XX. Guimarães Rosa, como lhe é característico, ao se ater às bases históricas e sociais da formação da sociedade brasileira que ainda vigorariam no sertão, fá-lo de forma sempre subliminar. Ele desloca o foco central para as paixões humanas, tão universalmente regionais, que, na situação supracitada, parece remeter, apenas, aos perigos implícitos ao ciúme e, consequentemente, ao desejo masculino de posse.
Entretanto, uma leitura acurada traz à tona as marcas mais nocivas da escravidão que subsistiram por longo tempo na sociedade brasileira. Além do conflito central no sentido de conciliar erotismo com a superação do conservadorismo preconceituoso patriarcal em relação ao sexo, há, também, uma primorosa discussão sobre preconceito racial, que, na contramão da história patriarcal, suplanta o preconceito sexual. A conjugação do preconceito racial em relação ao negro, associado ao sexual em relação à mulher, funciona no texto como o estopim que detonará a sempre latente e periclitante violência doentia do vaqueiro/matador, casado com a ex-prostituta.
Soropita, com muito esforço e movido pelo desejo e por uma paixão autêntica, consegue manter controlado seu ciúme pelo passado de Doralda. Afinal, ele a levara do bordel ao altar e ao juiz, o que per si indica a intensidade de sua paixão. Entretanto, ele não consegue superar seus preconceitos em relação ao fato de Doralda ter tido homens negros, isto é, ele acha que negros como Iládio maculariam de forma indelével as mulheres brancas, como Doralda. Ou seja, o preconceito de cor, neste caso, suplanta o do sexo. Tanto é assim que, ao quase matar Iládio – ou matá-lo simbolicamente – ele está, de fato, acertando as contas com Sabarás e com qualquer outro negro com o qual Doralda se prostituíra. Iládio seria o bode expiatório através do qual Soropita limparia as marcas da negritude do corpo da mulher. É por isso que, em seu surto de fúria, ele acusa Iládio: “Tu, preto, atrás de pobre de mulher, cheiro de macaco...”.
Entretanto, além deste aspecto explicitado em “Dão-Lalalão”, há outros mais complexos e sutis. O que salva Iládio é o fato de ele, quando acuado, comportar-se com a humildade e a subserviência de um escravo face ao seu senhor todo-poderoso e cruel. Iládio, acuado, “rolava da besta abaixo, se ajoelhava: Não fiz nada!... Tomo benção... Tomo benção.”. Este servilismo acalma Soropita, como se, dessa forma, as coisas estivessem nos seus devidos lugares: isto é, lugar de negro é ajoelhado aos pés do branco, pedindo perdão e implorando pela vida.
Guimarães Rosa, com o esmero que lhe é peculiar, deixa claro que, se comparados fisicamente, indiscutivelmente, o negro Iládio é maior e mais forte que o branco Soropita e, portanto, lhe é superior, o que, certamente, acentua os ciúmes delirantes: Soropita comandava aquele grande escravo aos pés de seu cavalo. Mas, a narrativa vai além. Por que motivo Iládio, apesar de ser maior e mais forte, além de, também estar armado, não reage? Por que ele tem de prostrar-se humildemente aos pés do branco? Esta resposta tem de ser buscada em séculos de subserviência como forma de sobrevivência, assim como o lastro da prepotência de Soropita – além de seu trânsito entre a sanidade e a loucura e sua tendência inata para a violência, que dá vivacidade à narrativa – remete à aristocrática sociedade escravista, na qual moça branca deveria ser acessível, apenas, aos “homens de boa família”. Já “a negra para tudo / a negra para todos / a negra para capinar, plantar, regar / (...) trepar” (Andrade, 1992: 448). É por isso que, no final da afronta, ao humilhar Iládio e, por extensão, aos negros em geral e Sabarás em especial, Soropita deseja que estes se eclipsem: igual a um pensamento mau, o preto se sumia, por mil anos.
Ao finalizar a descrição da humilhação pública do negro, o narrador é profundamente solidário com ele, que, assim como na vida, é o último do grupo. “O pobre do bom Iládio, bambo atrás de todos”. (D.L: 862). Encerrando o entrevero, há, ainda, uma cena ambígua, na qual o leitor fica sem saber se, de fato, Iládio está a salvo ou não. “Com o dedo sinalou uma cruz na capelada. Daí, mirou a arma que ainda empunhava – aquele dado de presente pelo Dalberto – o revólver que no fim não precisou de atirar.” (D.L: 862). Ao traçar a cruz na arma, assinalando que, com este sinal, Iládio era como mais um de seus mortos – remissão ao costume dos matadores e jagunços de gravarem nas coronhas das armas uma cruz para cada adversário morto – ele dá o caso por encerrado? Ou seria este gesto a indicação de que este acerto ainda está em aberto?
Feita a catarse, Soropita retorna à normalidade e à pacata e prosaica vida rural e comunica aos assustados moradores do Ão de que irá ao Andrequicé, ouvir o restante da novela do rádio, como se nada de extraordinário tivesse acontecido.
“Dão-Lalalão” desvela a capacidade de Guimarães Rosa de – como em um palimpsesto –, ao narrar uma estória, abordar em profundidade temas e valores que representaram uma forma de vida em vias de extinção, mas ainda vigente no arcaico espaço do sertão. Neste espaço tão regional, subjazem conflitos humanos locais, como a discussão de onde e em que circunstâncias socialmente se situam brancos e negros em relação ao sexo em uma sociedade historicamente escravista, o que dá encanto e uma assustadora, mas tênue, cor local à narrativa. Entretanto, para além desses aspectos, há uma discussão universal sobre a periclitante conjugação entre delírio, preconceito, sexo, posse, ciúme, desejo e violência, que, indiscutivelmente, extrapola as bitolas do sertão. A conjugação de tais temas, como afirma o fatalista delegado do conto “Fatalidade”, desvela que “A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio” (F: 429).
Referências bibliográficas:
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ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade: poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
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BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&M, 1987.
CORRÊA, Mariza. Repensando a família patriarcal brasileira. In ARANTES, Antonio Augusto. et. al. (orgs.). Colcha de retalhos: estudo sobre a família no Brasil. 3. ed. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1984. p.15-42.
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara/Kloogan, 1991.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. 3 v.
___________ Casa-grande e senzala. 22. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
HÉRITIER, Françoise. Masculino/Feminino. Dissolver a hierarquia. Trad. Carlos Alboim de Brito. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. v. 2.
ROSA, João Guimarães. Guimarães Rosa: ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1994. v. 1 e 2.
[1] A obra de Gilberto Freyre, inicialmente, foi acolhida com grande entusiasmo pela crítica. Posteriormente, ao contrário, passou a ser questionada, dado o seu enfoque se ater, preponderantemente, à classe dominante e ao fato de o autor ter edulcorado os conflitos entre negros e brancos. A propósito desse questionamento, vale destacar o texto “Repensando a família patriarcal brasileira”, de Mariza Corrêa (1984). Entretanto, é indiscutível que Freyre – apesar da pertinência das questões apontadas – fez uma leitura primorosa de alguns aspectos primordiais da formação da sociedade brasileira. No que se refere a este estudo, é marcante que a obra de Gilberto Freyre subjaz à imaginária construção social da obra ficcional de Guimarães Rosa como um todo.
[2] Neste estudo, todas as citações da obra rosiana referem-se à obra Guimarães Rosa: ficção completa (ROSA, 1994) e serão empregadas as abreviações D.L, para “Dão-Lalalão”, e F, para “Fatalidade”.
[3] Embora tal afirmação possa parecer exagerada, a crônica policial cotidiana apresenta um número impressionante de homens que matam suas mulheres. Também na música caipira brasileira – a exemplo da Rita e da cabocla Tereza – este tema é uma constante.
[4] Em 1979, em São João Del Rei – MG, por acaso, passei por uma viela composta, apenas, por pequenas e alegres casinhas. Era um bucólico final de tarde, a rua alegre e animada. Na frente de algumas casas havia música e eu, distraída, apenas apreciava o movimento e a animação. Já no final da rua, deparei com duas mulheres discutindo e, pela contundência do vocabulário e pelo tema da discussão, deduzi que a viela era formada por pequenos bordéis. Mas, o mais surpreendente é que uma das mulheres que discutiam, ao se dar conta da minha presença, parou a discussão e disse para a outra: “– Tenha respeito!, tem família passando”. O marcante neste episódio, certamente, não foi passar pela rua, mas perceber como a moral vigente – não obstante o fato de o século XX caminhar para o seu fim – estava de tal forma entranhada na prostituta que ela, apesar de estar no seu ambiente de trabalho, ainda se preocupou em não afrontar uma “moça de família” que tinha invadido seu espaço.
Pour citer cet article: FORTES, Rita Felix, “O erotismo pulsante no sertão: uma leitura de “Dão-Lalalão”, Plural Pluriel - revue des cultures de langue portugaise, [En ligne] n° 4-5, automne-hiver 2009, URL: www.pluralpluriel.org. |