Babel cultural

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Eliana Albuquerque

Universidade Estadual de Santa Cruz

 

MATOS, Edilene (org.). Cultura e arte: memória e transgressão. Salvador : Editora da Universidade Federal da Bahia, 2011, 284 p. ISBN: 978-85-232-0770-0

 

Fricção, imprevisibilidade, instabilidade, rapidez, fluidez, movência e hibridação são alguns dos termos que podem ser utilizados para compor o diagrama cultural da nossa atualidade e criar a imagem mental mais próxima do mundo contemporâneo. É nesse contexto multifacetado e cada vez mais complexo que reflexões e processos culturais diversos convivem através da tensão e do diálogo, refazendo-se infinitamente e contribuindo para definir uma realidade que, como toda forma de realidade, é produzida no embate entre as diferentes políticas de sua construção (Rolnik, 2009).

 

Mas como dialogar com tantas informações e ideias? Como sistematizar diferentes abordagens sobre este mundo, seus processos culturais e artísticos, memórias e transgressões, sem perder de vista a coerência? Foi esse desafio que Edilene Dias Matos aceitou ao organizar Cultura e arte: memória e transgressão, uma publicação do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, Brasil.

 

Experiente na vida acadêmica, dona de aguçada sensibilidade e apaixonada por discussões envolvendo a cultura, a literatura e as poéticas da voz, Edilene Matos, doutora em Comunicação e Semiótica/Literaturas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com Pós-Doutorado em Literatura pela Universidade de São Paulo tem, a meu ver, autoridade necessária para organizar um livro tão inusitado, composto por textos tão variados em seus matizes e enfoques que nos dão a impressão de estarmos diante de uma babel cultural.

 

Talvez por isso o seu livro seja mais que uma publicação acadêmica e/ou multidisciplinar repartida em 16 capítulos e seus respectivos autores. Trata-se, em verdade, de um delicioso passeio pelas idéias de importantes intelectuais que transitam entre as letras, as artes, a comunicação, a história, as culturas e o sem fim de emoções e conhecimentos que se movem constantemente naquilo que a organizadora define como eterna dança do(s) saber(es).

 

Não é um livro óbvio, a começar pela sua organização. Intencionalmente fora do padrão sequencial, onde geralmente os textos se aglutinam por subtemas, aqui o leitor pode pular de um texto sobre novas tecnologias para outro sobre memória oral sem perder o fôlego e o rumo. Neste caso, a forma justifica-se na intenção: a autora, já na apresentação do livro, convida-nos a “olhar para o mundo e a vida, não como espaços de certeza, de precisão, de hierarquias traçadas, mas antes de tudo como espaços moventes, prismáticos”, onde a iluminação dada a cada objeto tem o sentido de destacá-lo para facilitar o olhar sobre ele.

 

Assim é que esse passeio movente através da memória e transgressão inicia-se com uma espécie de provocação feita por Lúcia Santaella que, ao apresentar as novas tecnologias da informação, termina por instigar poetas e escritores a lançarem mão desses novos instrumentos para incrementar suas produções literárias. E segue por outro caminho através de Ernesto Manuel de Melo e Castro, que, ao refletir sobre a força dos códigos digitais no mundo atual, preocupa-se com a comunicação e a incomunicação que deles podem resultar.

Idelette Muzart dá a primeira guinada radical da coletânea ao trazer para a discussão o mito de Inês, assentado na tradição oral ibérica, que se apresenta através da fala do romanceiro e do cancioneiro. E é seguida por Irene Machado, cujo texto debruça-se sobre a obra do escritor mineiro João Guimarães Rosa para apontar o intenso e curioso diálogo entre as experiências estéticas da tradição oral e do universo semiótico que compõem os cenários do rádio, cinema e televisão.

 

A partir daí os capítulos nos levam a outros saltos: Renato da Silveira discute o espetáculo e seu contexto, utilizando, para isso, uma abordagem multidisciplinar e criativa, rica em referências teóricas e reflexões próprias a respeito dos processos de espetacularização. Mais adiante, Paulo Cesar Alves brinda o leitor com um texto impecável, onde tradição e ruptura são confrontadas através do teatro de Qorpo Santo; Amálio Pinheiro discute a importância da crônica de jornal na América Latina como objeto móvel e complexo, esquadrinhando a produção de linguagens (verbais, visuais, táteis e vocais) em formação no continente e Maria Virgília Frota Guariglia visita o conceito de poesia experimental tomando como base as obras dos poetas portugueses Ernesto Manuel de Melo e Castro e de Ana Hatherly que, tomando a imagem visual como material de criação, se propõem a reinventar a escrita e a leitura.

 

E ainda não acabou. Se o leitor já se encantou com a versatilidade temática, ainda vai se surpreender mais com os textos de Biagio D´Angelo, que discute a literatura de viagem como gênero fronteiriço entre o relato, o documentário e a narrativa ficcional, capaz de jogar por terra os conceitos canônicos de gêneros literários; de Maria Rosa Duarte de Oliveira, que explora o território da voz e da escrita a partir da obra de Paul Zumthor; de Maria Claurênia A.A. Silveira que, pesquisadora experimentada em narrativas populares, discute a oralidade na sua extensão maior e para além da palavra: através da movimentação corporal, dos gestos, olhares, silêncios e suspiros, do dito e também do não dito.

 

Pode ainda encontrar outras paragens nos textos de Sylvia Nemer que, a partir do conceito de “lugares de memória” proposto por Pierre Nora, lança o olhar sobre o acervo do cordelista Raimundo Santa Helena; de Gilmar Carvalho, que discute os movimentos de aproximações e recuos entre a mídia e as novas tecnologias; de Gilvan de Melo Santos que, a partir das capas dos folhetos de cordel, dialoga com teorias e idéias propostas por Gilbert Durand, Paul Zumthor e Bakhtin; de Elizabeth Ramos, que analisa o trabalho do cineasta Nelson Pereira dos Santos e sua capacidade de recriação do clássico Vidas Secas.

Por fim, o leitor certamente vai se deleitar com o capitulo assinado por Marinyse Prates de Oliveira, que discute a aproximação entre os filmes Abril Despedaçado e Lavoura Arcaica. Resultados de diálogos com obras literárias da década de 70, os filmes são observados a partir de aspectos como aproximação e distanciamento, reverência e autonomia, continuidade e descontinuidade, tendo como foco a composição das mesas de refeição das famílias, onde o poder paterno é exercido e também desestruturado em sua plenitude.

 

Observando o conjunto da obra, a apreensão inicial diante da sua (des)organização e da multiplicidade/quantidade de textos dá lugar à admiração pela consistência do seu conteúdo. A intenção de atender a diversas demandas e olhares, que poderia se constituir em risco, neste caso torna-se virtude, transformando esta edição em obrigatória para todos aqueles que se lidam com as discussões contemporâneas no campo da cultura e da arte.

 

Definitivamente, Cultura e Arte: memória e transgressão é um livro que não pode ser recebido como um projeto linear e óbvio, mas sim como resultado de um processo, de uma tessitura, de uma rede de conexões diversas que não escondem a existência fricções e diálogos na sua estrutura, tornando-se uma obra permanentemente inconclusa. Isso certamente deixará no leitor a esperança de que surja um segundo exemplar.

 

Referências Bibliográficas:

ROLNIK, Suely. Micropolíticas em atrito. Disponível In:  <http://www.cpflcultura.com.br/site/2009/10/16/integra-micropoliticas-em-atrito-suely-rolnik/>, (Consultado em 14/06/2012)