Numéro 12 : Textes et documents

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A Escrita e a Voz

(de uma literatura popular brasileira)

Paul Zumthor

 



tradução de Idelette Muzart

do artigo intitulado

« L’Ecriture et la Voix (d’une littérature populaire brésilienne ) ». Critique, Littératures populaires : du dit à l’écrit, 394 : 228-239, mars 1980. Paris : Editions de Minuit, ISSN 0011-1600

(com autorização de M.L. Ollier)

 

 

 

 

J. PIRES-FERREIRA, Cavalaria em cordel, São Paulo, Editora Hucitec, 1979.

I. FONSECA DOS SANTOS, « La littérature populaire en vers du Nord-Est brésilien », in « Les imaginaires », Cause Commune, 1979, I, p.187-223, coll. 10/18.

Literatura popular em verso : Catálogo, I, 1961, 397 p. ; Antologia, I, 1964, 592 p. ; Estudos, I, 1973, 419 p. Rio de Janeiro, Ministério da Educação, Casa de Rui Barbosa.

 

 

 

 

As várias questões levantadas pelo livro de Jerusa Pires-Ferreira, Cavalaria em cordel, por essa literatura de cordel (« littérature de ficelle », diria eu, se ousasse propor uma tradução !) ultrapassam o quadro da etnografia e são importantes para uma definição funcional das tradições poéticas orais e de sua relação complexa e movediça com a escrita. Acontece que estou trabalhando num livro no qual gostaria de realizar, num nível conceitual bastante geral, uma Poética da oralidade1 (livro cujo projeto está esboçado num artigo publicado no número 40 da revista Poétique). Os fatos brasileiros integram-se nessa perspectiva.

O tema, desde os anos 50 no Brasil, 60 na Europa, deixou de ser novidade : já é extensa a lista de publicações suscitadas, escritas por folcloristas ou historiadores, em primeiro lugar, ou por amadores de poesia « popular ». Duas instituições brasileiras encontram-se atualmente engajadas na constituição e elaboração de um corpus dessa literatura : a Casa de Rui Barbosa, no Rio, que produziu nos últimos anos vários volumes de documentação, e o « Programa de Pesquisas em Literatura Popular », criado em 19772. Na França, os lusistas conhecem os trabalhos do Professor Raymond Cantel, da Sorbonne. Entre alguns outros estudos dispersos, citaria o artigo recente de Idelette Fonseca dos Santos, apresentação geral, descrição dos principais aspectos do fenómeno e escolha de textos traduzidos. Só posso indicar estas páginas para o leitor desejoso de informação de primeira mão.

 

Na perspectiva das minhas próprias pesquisas, a literatura de cordel apresenta um interesse triplo :

 

- No plano da produção textual, recorre a procedimentos de composição oral tanto quanto escrita ;

- No plano da recepção, mobiliza a audição e a leitura ; esse caráter, aparentemente incerto, não é fruto de simples acasos de circunstância mas de uma equivocidade profunda, causada pela história e que se tornou hoje essencial ;

- Pertence (por quantos anos ainda ?) a um setor geograficamente limitado do mundo contemporâneo, às realidades presentes e diretamente observáveis desse mundo. Pode ser portanto abarcado em sincronia com nossa situação de cultura. O fato é notável porque tradições semelhantes à literatura de cordel nordestina apagaram-se na Europa, numa época às vezes próxima da nossa, mas já distante a ponto de não permitir tal integração : assim, a literatura espanhola de mesmo nome, que permaneceu viva até a guerra civil. Remeto para o belo livro de J.-C. Baroja, Ensayo sobre la literatura de cordel (Madrid, Ed. Revista Occidente, 1969).

 

Qualquer que tenha sido a diversidade dos elementos que a constituiram, a literatura de cordel veicula até nós formas de dizer e alguns esquemas ficcionais velhos de quatro, cinco, seis séculos, que atravessaram quase intactos essa longa duração. Foi o que, no meu primeiro contato com o Brasil, atraiu em mim a atenção do medievista : esses curtos poemas narrativos apareciam globalmente como um verdadeiro conservatório do imaginário e do discurso poético medievais. Luis da Câmara Cascudo notou desde 1953 essa permanência, que parece ter desempenhado um papel determinante na fixação das formas estilísticas do cordel, sem deixar de se manifestar também aqui acolá no plano temático. Hoje, vários pesquisadores examinam com atenção este caso, excepcional no mundo ocidental, de continuidade histórica, como no livro de Jerusa Pires-Ferreira.

 

A expressão Literatura de cordel, vinda de Portugal para o Brasil, provavelmente no final do século XIX, refere-se ao costume dos mascates que, para vendê-los nas feiras, suspendem seus folhetos (livrinhos) a um barbante, como se estende roupa para secar. Estes folhetos são pequenos cadernos de papel acinzentado de má qualidade, leve e frágil, quase sempre no formato 11/18 e que contam oito, dezesseis, vinte e quatro páginas, ou qualquer outro número múltiplo de oito, raramento superior a quarenta e oito : por razões práticas de dobra da folha. Tais detalhes têm sua importância porque atestam da consideração de fatores puramente tipográficos na composição do texto. Simultaneamente, este escapa às convenções editoriais habituais na sociedade tecnológica : indicação de lugar, de data, até de autor ; sua situação social, por isso, difere pouco daquela dos manuscritos medievais…

 

Imprimem-se cerca de mil folhetos por ano, em tiragens por vezes enormes (fala-se em mais de 200.000 exemplares !) em pequenas oficinas especializadas, situadas nos Estados do Nordeste, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Bahia e, há vários anos, no Rio, em São Paulo e algumas outras grandes cidades. Os proprietários de algumas dessas tipografias compõem uma parte dos textos que publicam ; e os folhetos mais apreciados pelo público são frequentemente reeditados, em sua versão original ou variantes diversas.

 

A impressão é rudimentar ; o texto, praticamente sem pontuação, sempre escrito em verso, contando-se 50 a 60 versos por página, ocupa inteiramente todas as páginas, da primeira à última : espaço branco somente nas margens ou entre as estrofes. Os versos, de fato, são agrupados em sextilhas ou septilhas, raramente em décimas ou outras estrofes cuja lista foi várias vezes estabelecida. O metro, idêntico em princípio em todo o poema, tem geralmente uma base heptassilábica, com realização irregular. O número de sílabas varia livremente em torno de sete, oito ou dez : irregularidade mais aparente do que real, porque a unidade rítmica está constituída no nível da estrofe inteira e não de suas partes. A mesma tendência manifesta-se na repartição das rimas (ou das assonâncias com a mesma função) : só raramente os versos todos rimam ; nas sextilhas, são três somente. Essa versificação, em relação com as tradições literárias ibéricas, é do tipo arcáico e apresenta uma semelhança nítida com o sistema que, no século XV, seguiam os cantadores do Romanceiro.

 

A folha ou as folhas dobradas em oito para formar o livrinho, são fixadas por um pouco de cola numa capa de papel, frequentemente azul, verde ou cor-de-rosa, ornamentada por uma imagem : fotografia emprestada de algum semanário ilustrado, ou desenho (tipografias de São Paulo imitam o estilo dos comics americanos), o mais das vezes xilogravura, feita pelo próprio autor do texto. Trata-se de uma arte enxertada sobre a literatura de cordel e que se tornou inseparável, apesar de que tende hoje a emancipar-se : encontram-se nas feiras belas xilogravuras reproduzindo, em formato duplo ou triplo, tal capa de folheto. A imagem preenche, junto ao público apenas alfabetizado a quem se destina essa literatura, uma função múltipla, comparável àquelas que assumem para nós um título, um súmario ou até um nome de autor. A imagem, mais sutil do que parece ao primeiro olhar, manifesta alguma significação essencial do texto que anuncia e designa, fixando-o na memória de modo algo parecido às figuras simbólicas das antigas artes memoriae analisadas por F. Yates. Apesar do lento recuo do analfabetismo, perpetua-se assim uma situação quase generalizadas nas culturas de tipo tradicional, cujos exemplos medievais não faltam : à escritura (dos letrados, dos clérigos, dos chefes) não se opõe, pura e simplesmente, a oralidade das comunicações e das transmissões, como também uma estrutura mais ou menos complexa de visualidade emblemática, no limite do ideograma.

 

Escrito, o folheto se oferece à leitura. Mas seu texto está repleto de marcadores que convidam à recitação pública : interpelação dos ouvintes, apóstrofes, exclamações admirativas ou indignadas estão em todo a narrativa. Obrigação estilística ? Talvez. De fato e pelo menos no estado atual do seu uso, o folheto tem por vocação a leitura em voz alta, mesmo que solitária. Contudo, alguns autores gostam de ilustrar seu texto de figuras gráficas nem sempre perceptíveis à audição : assinatura por acróstico, ou até composição em abc, cada estrofe começando por uma letra diferente do alfabeto, na ordem de A até Z… Ambiguidade, também, digna do medievo.

 

O primeiro compositor e editor de folhetos teria sido, nos anos 1890, Leandro Gomes de Barros, da Paraíba, autor notavelmente fecundo, a quem se atribui (com certo exagero ?) até dez mil textos ! e cuja obra já foi publicada parcialmente numa antologia em 1976. É pouco provável que Leandro tenha criado uma literatura integralmente nova. Teria tido (se realmente foi ele) a ideia de utilizar a imprensa no processo de fabricação e difusão de um tipo de poesia já existente : o próprio sucesso dessa poesia – numa população até então desprovida de outros instrumentos de comunicação para o exterior – teria causado, entre divulgadores, recitantes, autores, uma concorrência tal que a impressão dos seus textos teria sido considerada como um meio garantido de fama e proveito. Até então, os poemas do mesmo tipo teriam sido distribuídos sob a forma de folhas soltas manuscritas…

 

Tais conjecturas nos permitem voltar no tempos até a primeira metade do século XIX, pelo menos. Mais além, falta terreno firme para pisar. Um único fato permanece indubitável : a existência de tradições orais entre os colonos portuguêses que, nos séculos XVI e XVII, povoaram o litoral do Brasil, tanto quanto entre os negros que foram trazidos da África. Seria inverossímil que, entre essas tradições, não tivessem sido mantidas algumas formas poéticas oriundas do velho folclore europeu, quiçá africano, senão da prática letrada.

 

Diversos indícios, na literatura de cordel, tal como podemos observa-la hoje, orientam para a antiguedade das tradições sobre as quais se construiu. Os autores e vendedores de folhetos costumam distinguir, no seu uso, entre o que é « matéria feita », isto é conforme ao cânone habitual, do « verso do momento », improvisados em reação a um evento ou a atitude de um dos presentes. De qualquer modo, esses autores testemunham de uma extraordinária rapidez de concepção e execução. As anedotas pululam a esse respeito. Citam o caso de Delarme Monteiro compondo, ao ouvir o noticiário do rádio anunciando o suicídio do presidente Vargas, no dia 24 de agosto de 1954, um folheto impresso no dia seguinte e cujos 70.000 exemplares já estavam todos vendidos no dia 27 ! Em que medida o crítico pode falar aí de oposição entre « tradicional » e « improvisado » ? No plano temático, poderia ser útil, aqui ou ali, mas não o seria, com certeza, no que se refere às formas estilísticas, retóricas, versificatórias e à técnica dos poetas. A peculiar presteza de execução requer um automatismo rigoroso dos procedimentos – automatismo que, por sua vez, implica (se julgarmos por analogia) uma tradição longa, longa demais em todo o caso para ser posterior à invenção do impresso.

 

Muitos dos textos divulgados por folhetos têm forma dialogada : disputas sobre um tema qualquer, entre dois ou mais personagens, ou sobre sua respectiva habilidade entre dois poetas rivais. Este gênero poético, chamado peleja ou desafio, bem conhecido na Europa medieval, está comprovado, atualmente, na maioria dos povos africanos. Ora, se algumas pelejas são imaginárias (como por exemplo a « Disputa de Zé do Caixão com o Diabo », publicada em São Paulo, em 1976, 714 versos em 32 páginas), outras não fazem senão reproduzir, com algumas alterações, o texto de uma peleja improvisada durante uma cantoria.

 

Esse nome designa uma competição pública organizada entre vários poetas, convidados a confrontar seus talentos, dois a dois, frente a um auditório que julgará do seu mérito. Radio e televisão conseguirão talvez em breve apagar a tradição das cantorias. Ainda não chegamos lá, em boa parte graças ao interesse manifestado recentemente pelos meios universitários do Nordeste. A cantoria se desenvolve, durante duas ou três horas, seguindo um ritual bem definido, destinado a testar de várias maneiras a faculdade de improvisação dos concorrentes : formas métricas diversas, sempre regradas com exatidão, temas tradicionais e circunstanciais são impostos. O critério único de julgamento é a conformidade ao código, que o público conhece, tanto quanto os poetas, em todos os seus matizes ; a palavra cantoria serve para designar esse código e, ao mesmo tempo, refere-se globalmente aos poemas assim compostos.

 

Algumas cantorias do século XIX continuam famosas e narrativas lendárias circulam a seu respeito ; os poetas que delas participaram, tornaram-se figuras míticas no Brasil contemporâneo, como esse Inácio da Catingueira, escravo negro cuja lembrança nos leva a operar uma volta ao passado até os anos de 1800. A cantoria é uma instituição da cultura popular, hoje marginalizada, dos Estados do Nordeste : donde a seriedade das regras que a organizam e regem, além do texto, a música que acompanha o texto. O poema na cantoria é cantado : sobre uma melodia simples, permitindo as variações individuais e exigindo um tom de voz agudo, nasalizado, impróprio a produzir efeitos de ritmos outros do que aqueles da versificação. Este tom permite por outro lado que, numa longa sessão, o cantor possa preservar sua voz… Contudo hoje, sob a influência do rádio, alguns poetas trabalham sua voz, mas a língua mantem uma distinção nítida entre as duas artes : o cantor canta canções ; o cantador participa das cantorias… o cantador ou a cantadora, porque algumas mulheres conseguiram impor seu talento, como Lourdinha de Oliveira, por exemplo.

 

Da cantoria ao folheto, a distância é curta e nenhuma fronteira os separa. As mesmas regras de versificação se aplicam nas primeiras e na composição dos segundos. Muitos textos impressos de cordel circularam graças a cantadores, sendo alguns muito ilustres, como Aderaldo, morto em 1967 em Fortaleza e cujas Memórias foram publicadas em 1963. Que o poema cantado tenha sido anteriormente impresso, quiçá escrito a mão, ou que uma de suas variantes tenha sido posteriormente entregue à escritura ; que o autor tenha por objetivo final a leitura ou a audição : são termos de uma série de equivalências, no âmbito de um amplo movimento cultural onde a totalidade do sensorium coletivo se engaja et onde a voz, o ouvido, o olho e a mão participam, em princípio de modo igual, como no Carnaval ou nos Pastoris de Pernambuco, oriundos das Natividades medievais importadas no século XVI em Olinda por Frei Gaspar de Santo Antonio…

 

Por esse motivo, a passagem à escritura, e depois ao impresso, só foi acompanhado muito tardiamente pela apropriação do texto, que caracteriza nossa prática e nosso Direito. Alguns anos após a morte de Leandro Gomes de Barros, sua viúva vendeu seus direitos autorais para um dos seus concorrentes, proprietário de uma tipografia que não vacilou em reeditar Leandro sob seu próprio nome ! E não faz muito tempo que um compositor, tomando emprestado o texto já publicado por outro, contentava-se em modificar o acróstico final, revelador do nome do autor ! As noções de autor, de propriedade literária, de autenticidade, de plágio, continuam desconhecidas ou muito vagas, para o público não letrado da literatura de cordel… porque na verdade tais noções resultam, não da simples existência da escritura, mas de sua absoluta dominação sobre a própria economia do pensamento.

 

Do oral para a escritura, a distância – já o sabemos desde Mac Luhan, o Padre Ong e Jack Goody – é menos cronológica do que funcional. Embora seja necessário lembrar que não existe homologia entre os dois termos : não depende do oral (se posso usar essa expressão) passar para a escrita ; ao contrário, qualquer escrito em qualquer momento pode ser ‘oralizado’. A operação que o transforma, substituindo à leitura uma « performance », chega a suspender certas faculdades de julgamento do seu destinatário ; o texto ouvido parece não exigir, hic et nunc, uma interpretação ; o ouvinte o percebe, pelo menos num primeiro tempo, como pura nominalização : o falante, o contador, o cantador contentam-se em dar às coisas de que falam, nem mesmo seu nome, mas um primeiro nome, um apelido muito peculiar, criador de uma relação profundamente pessoal, anterior e indiferente a qualquer imposição de uma significação implícita.

 

O numeroso público da literatura de cordel se encontra no mundo rural e nas pequenas cidades do sertão ; como também, e cada vez mais nos últimos anos, entre os intelectuais de todo o país, fascinados por essa dimensão, até então desprezada, da cultura nacional. A corrente de migração selvagem que empurra até as grandes cidades du Sul um número crescente de camponêses pobres do Nordeste, concorre à esta voga (não desprovida de estetismo) para estender à maior parte do Brasil atual a área de difusão do cordel. Contudo ele permanece muito marcado pela sua origem geográfica : seus traços mais estáveis e mais originais provém das funções que, até nos anos 1950, o cordel assumiu – e assumiu sozinho – na existência social e moral das populações que o haviam criado : funções que não foram (ainda) totalmente desvalorizadas pelo papel de curiosidade etnológica que desempenha doravante no universo cultural dos citadinos letrados.

 

Até a Segunda Guerra mundial, o Nordeste conservou, em relação ao Brasil meridional e central, uma personalidade fortemente marcada. A coexistência dos colonos brancos e dos escravos negros foi aí mais longa e mais estreita que em nenhuma outra parte do país, multiplicaram-se os intercâmbios interculturais o que favoreceu a emergência de formas sincréticas : o canto coletivo, as cantorias primitivas talvez ? A extrema raridade de livros importados no tempo dos portuguêses, o analfabetismo generalizado durante muito tempo nessas regiões ; a dispersão da população através de imensos espaços cinzentos e quentíssimos onde catástrofes naturais frequentes criaram durante séculos um desequilíbrio econômico permanente ; um modo de vida patriarcal, reagrupando algumas centenas de indivíduos em torno do Senhor, nessas fazendas quase autárquicas ; donde a estreiteza e a violência do sentimento de pertencimento, um estado de guerra privada latente que mantém e de que se alimenta… Dessa miséria – sentida como o efeito de uma justiça divina -, dessa submissão surgem periodicamente surtos de revolta ilusória, de movimentos messiânicos armados (tal como o de Antônio Conselheiro, no Estado da Bahia, no final do século XIX) e o banditismo de cangaceiros, assassinos e justiceiros, hoje mitificados pelo cinema, sendo que os últimos só foram executados nos anos 30 (o ilustre Lampião foi morto em 19363…) A existência de cantadores itinerantes, solitários ou em grupos, atestada até os anos 1950, não deixa de constituir um outro aspecto do mesmo fenômeno.

 

O cantador ou contador se institui (é instituido pelo consenso social – como o manifesta o fato de ser alimentado e pago) como portador da memória coletiva. O Nordeste, já foi observado, é a única região do Brasil, e talvez da América do Sul, onde a poesia popular veicula quase exclusivamente relatos, fortemente estruturados. Transmite-se assim, pelo intermédio de uma gramática narrativa explícita, uma forma de pensamento consciente de si mesmo, modos peculiares de uma sociedade se perceber e se imaginar, modos de aspirar à ação ou justificar sua incapacidade de agir. Em outros termos, trata-se aqui de epopeia. Assim, a solidez de sua articulação não basta para conferir a esse relatos sua eficácia social ; eles se agrupam em ciclos, tecendo redes mais ou menos soltas, que parecem procurar captar tal ou tal setor da existência comum. O que constitui um ciclo é menos seu tema geral do que a questão tácita que coloca aos seus ouvintes e que lhes dizem respeito diretamente, como coletividade. Assim, os ciclos que se organizam em torno da lembrança de cangaceiros famosos, sendo o mais desenvolvido, a gesta de Lampião, que foi estudado outrora por Mário de Andrade. Tal é a matéria principal que constitui, desde sua criação, há quase um século, a literatura de cordel.

 

As diversas classificações propostas desta literatura distinguem essencialmente dois grupos de textos : o primeiro, com predominância ética, cujos relatos visam descrever as peripécias e infelicidades, méritos e desméritos, de tal personagem típica ou de tal categoria social, por vezes tal região ou cidade ; - a segunda, com predominância heróica, narra as aventuras de personagens históricos ou lendários (do Presidente Kubitschek ao Boi misterioso) que apresentam aos leitores ou ouvintes uma possibilidade de identificação.

 

Alguns desses relatos levaram pesquisadores, como Câmara Casculo, Raymond Cantel outrora, Jerusa Pires-Ferreira hoje, e muitos outros, a colocar a questão das sobrevivências medievais nos folhetos e nas tradições regionais donde tiram sua substância. Assim, no corpus sobre o qual trabalhou Jerusa Pires-Ferreira, figuram uma quinzena de folhetos contando alguma maravilhosa vitória de Roldão, Oliveiros, Carlos Magno ou seus Doze Pares ; um número equivalente de textos é dedicado a temas cavalherescos semelhantes sobre heróis com nomes menos tipicamente medievais… sendo que, três vêzes, trata-se de Joana d’Arc ! O mesmo corpus comporta ainda mais de trinta narrativas maravilhosas, parentes próximas da epopeia medieval tardia e dos « romances de cavalaria », apreciados por D.Quixote.

 

Um exame exaustivo, se isso fosse possível, da literatura de cordel, revelaria, na prática dos autores, o uso de uma rica onomástica emprestada do medievo hispánico e sobre tudo francês, bem como de uma temática oriunda do mesmo passado e que continua surpreendentemente coerente. Esses elementos, ao lado de lembranças bíblicas, restos de história antiga, alguns conhecimentos escolares atomizados, fragmentos de discursos folclóricos, constituem um saber, uma espécie de cultura de base e de referência, permitindo ao autor, até se for um cantador analfabeto, elaborar seus próprios discursos. Ora seus ouvintes possuem também esse saber, pelo menos em grande parte. Folcloristas, como Marlyse Meyer, historiadores como Teixeira Monteiro, encontraram rastos dessa cultura em várias regiões do país : durante uma festa popular celebrada, hoje, no dia de Pentecostes, em várias localidades do Sul e do Centro, um desafio espetacular opõe protagonistas usando os mesmos nomes dos heróis da Chanson de Roland… apesar de que a ação pareça comemorar a batalha de Lepanto ! A dança mimada, chamada de congada, costume antigo de escravos, representa, no Sul, o combate de Roldão e dos Pares contra Ferrabrás. Durante a guerra civil provocada, entre 1912 e 1916, pelo movimento messiânico do Contestado, um grupo de combatentes de elite, entre os rebeldes, se autodominavam « Os Doze Pares da França », enquanto que os chefes identificavam sua missão à « guerra de Carlos Magno »… Ninguém duvida hoje de que essa « lenda carolíngia » (entenda-se a memória, um pouco apagada, das canções de gesta francesas dos séculos XII e XIII) tenha sido integrada muito cedo, talvez desde o início da colonização portuguesa, ao fundo que se tornaria aos poucos a cultura própria do novo povo brasileiro.

 

Conhecemos alguns dos veículos que transportaram até o litoral de Pernambuco ou de Sergipe, essas velhas tradições europeias. Poemas do Romanceiro (impregnado de influências épicas francesas) conseguiram se manter e se propagar pela tradição oral, como o fizeram em toda a América latina. Mas Câmara Cascudo identificou uma « fonte » precisa : uma « História de Carlos Magno e dos Doze Pares da França », longa narrativa em prosa, traduzido em Lisboa, do espanhol em português e que, tendo chegado no Brasil nos séculos XVII ou XVIII, era em torno de 1800 o livro mais lido, em privado e em público, com a Bíblia. O original espanhol da História, por sua vez, não fazia senão adaptar uma famosa compilação francesa redigida no século XV, contendo uma mistura de diversas canções de gesta anteriores.

 

Ora, todos aqueles livros estão escritos em prosa : a literatura de cordel (assim como as canções tradicionais orais às quais está aparentemente ligada) está em verso, sem nenhuma exceção. Era como se a forma versificada do Romanceiro tivesse tido vigor suficiente para digerir esta matéria e por cima engendrar esquemas discursivos e uma retórica especializada, de extensão virtualmente universal. Raymond Cantel mostrou como os motivos constitutivos da personagem de Roldão aparecem em alguns tipos de cangaceiros, por um lado, e, pelo outro, na figura do presidente-morto-tragicamente (Vargas, Kubitschek, Castelo Branco, Kennedy : todos foram heróis de folhetos, alguns com ciclos inteiros) e até na figura de extraterrestres que, há pouco, entraram nesta literatura… As próprias regras do discurso-sobre-o-herói, com prazo infinito de validade e produção, foram provavelmente definidas desse modo.

 

Para outros discursos, outras formas : os estudos sobre essa matéria são apenas iniciantes, mas podemos afirmar já que os autores de folhetos dispõem, senão de um conjunto de « gêneros literários » definidos, de vários registros expressivos coerentes, distintos e polarizados por uma intenção expressa… que não é necessariamente temática. Alguns dos seus elementos implicam talvez a sobrevivência (sem que fosse encontrado até agora um texto-matriz) de antigas narrativas da Távola Redonda. Pesquisas em curso, de Jerusa Pires Ferreira, poderão em breve nos informar a respeito.

 

A literatura de cordel pertence portanto à atualidade do nosso mundo. Será, com certeza, por pouco tempo. As causas de alteração se multiplicam e se diversificam nos últimos vinte anos. A transformação lenta do Nordeste – industrialização, pauperização, emigração, erosão das hierarquias – introduz no âmbito da tradição um fator de instabilidade que, a prazo, a condena. Antes mesmo que tal ameaça seja percebida, a difusão, nos anos 1940 e 1950, da energia elétrica tinha criado condições físicas capazes de agravar o quadro : o uso geral da luz artificial, eliminando do meio natural os ciclos noturnos, leva consigo aos poucos a dispersão dos homens e de suas atividades. A mídia eletrônica age, como já foi dito, no mesmo sentido, contudo de modo desigual : o radio e a televisão (por outro lado, se aproveitando dos cantadores !) implicam, principalmente no meio rural e por causa da relativa escassez desses aparelhos, um auditório coletivo ; o transistor, pelo contrário, tende a fechar o indivíduo na sua solidão…

 

Fatos e evolução semelhantes são observados em várias partes da América latina. Conheço melhor a situação no Brasil que me parece, até então, ter sido estudada com mais exatidão. Uma questão se coloca contudo ao continente inteiro : no próprio Québec (penso no tesouro de canções populares recolhido por Luc Lacourcière) ou no Mid-West dos Estados Unidos, onde foram encontradas em vários lugares belas baladas com origem medieval… No tempo da primeira colonização das terras americanas, a Europa entrava, bem ou mal, em razão da expansão da imprensa, numa era onde a escritura ia dominar. Os que partiam – aventureiros, missionários, marginais de todo calibre encontrados nos portos do Ocidente – mergulhavam ainda, até a barriga, até a boca, no velho mundo medieval, camponês e guerreiro, que tinha sido o mundo da voz. Nos estabelecimentos tão frágeis que edificavam, em nome de reis longínqüos, na vacuidade desse Novo Mundo, mantinham – mantiveram pelo tempo em que a sociedade e a técnica o permitiram – o sopro dessa voz, palavra viva, presença e calor… É disto que testemunha, a seu modo e no seu setor, a literatura de cordel. A voz que a engendrou e à qual retorna ainda hoje, em qualquer ocasião, constituia o lugar fundador da consciência do grupo. No meio de uma natureza brutal e hostil, a voz, o canto, estendiam o espaço dos corpos até o fundo das sombras aonde o eco chegava. Ora a voz, como tal, faz sentido, e sentido próprio. Os colonos, ou talvez tenham sido seus escravos, trouxeram nos seu navios velhos, uma imagem arquetípica, presente na Eurásia inteira, bem como na África negra ; aquela do cantador cego, errante de vilarejo em vilarejo e trazendo consigo poemas inspirados. No século XVIII ainda, na Espanha, as folhas volantes, donde saiu mais tarde a literatura de cordel, eram vendidas pelos cegos ; em Portugal, ésses conseguiram por privilégio real a concessão deste comércio. Tal costume implantou-se no Brasil… onde se pode supor que tradições africanas o confirmaram. Cegos eram numerosos, até os nossos dias, entre os divulgadores do cordel e os músicos de cantoria : um Aderaldo, um Sinfrônio, cantavam ainda nos anos 60. Ora, o que é um cego, simbolicamente e nessas condições culturais, senão o homem para sempre liberado da escritura ?

 

 

 

 


 

1 Paul Zumthor, Introdução à poesia oral, 2a ed. [Introduction à la poésie orale. Paris : Seuil, 1983]

2 O Programa de Pesquisas em Literatura Popular, PPLP, foi criado em 1977 na Universidade Federal da Paraíba.

3 NT. Lampião Em 27 de julho de 1938, e vários cangaceiros do bando foram mortos em 27 de julho de 1938, na fazenda Angicos, sertão de Sergipe.