Literatura da Amazônia - dificuldades do surgimento e classificação de um campo
Camila do Valle
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ
Pero una mañana llegaron los agrimensores.
Alejo Carpentier – El reino de este mundo
“Gide lia Bossuet descendo o Congo”. Assim Roland Barthes inicia o capítulo “O escritor em férias”, do seu livro Mitologias. E desdobra essa primeira frase, retirada do Le Figaro, numa interpretação acerca das formas de mitificação do papel de intelectuais e escritores franceses propiciadas pela imprensa francesa. E, se franceses, poderíamos dizer europeus, ou euro universais. Seguimos, assim, a interpretação de Pascale Casanova acerca dos veredictos de Paris, acerca do estatuto de universalidade e autonomia, em relação às questões nacionais, alcançado pela França, que seria, dessa forma, representativa de um espaço mais amplo, a Europa. E, se a Europa é entendida como o espaço de formulação do universal, sua literatura representaria, por conseguinte, a humanidade inteira. Destaco da mencionada primeira frase do ensaio barthesiano, a segunda parte: não o que Gide fazia, mas onde e quando. No Congo, enquanto descia o rio.
Mas essa atividade das instâncias consagradoras é uma operação ambígua, ao mesmo tempo positiva e negativa. De fato, o poder de avaliar e transmutar um texto em literatura também se exerce, de modo quase inevitável, segundo as normas daquele que “julga”. Trata-se inseparavelmente de uma celebração e de uma anexação, portanto, de uma espécie de “parisianização”, isto é, de uma universalização por negação de diferença. [...] A grandes nações literárias fazem assim com que se pague a outorga de uma autorização de circulação universal. Por isso, a história das celebrações literárias é também uma longa série de mal-entendidos e de desdém cujas raízes se encontram no etnocentrismo dos dominadores literários (principalmente dos parisienses) e no mecanismo de anexação (nas categorias estéticas, históricas, políticas, formais) que se realiza no próprio ato de reconhecimento literário. Nesse sentido, a tradução é também uma operação ambígua: meio de acesso à República das Letras oferecido pelas instâncias específicas e sua abertura constitutiva para a internacional literária, é igualmente um mecanismo de anexação sistemática às categorias estéticas centrais, fonte de desvios, de mal-entendidos, de contrassensos ou até de imposições autoritárias de sentido. O universal é de certa forma uma das invenções mais diabólicas do centro: em nome de uma negação da estrutura antagonista e hierárquica do mundo, sob o pretexto de igualdade de todos em literatura, os detentores do monopólio do universal convocam a humanidade inteira a se dobrar a sua lei. O universal é o que declaram adquirido e acessível a todos, contanto que se pareça com eles. (Casanova, 2002: 194)
Barthes, em sua análise, privilegia a primeira parte, a primeira ação, referida pelo verbo “ler”, acerca da construção do papel mítico dos intelectuais franceses que, tendo o mundano direito às férias – direito este relativamente recente na história dos trabalhadores europeus -, como qualquer trabalhador, não o utiliza como qualquer trabalhador. Para o argumento de Barthes sobre a interpretação da construção mítica do escritor, este estaria sempre produzindo, mesmo em férias. Sua preocupação seria a imagem construída para o intelectual europeu. O que tomamos como impactante na frase inicial, também do presente ensaio, é o fato de que o escritor euro universal apresentado navegue por um rio africano lendo o que seria uma paisagem europeia: páginas de um autor europeu – e aqui não vamos adentrar o tema da escolha desses autores, Gide ou Bossuet, para figurar nessa imagem. Ou seja, o escritor universal em férias no Congo está sem olhos para a pouco usual – para um escritor que vive na Europa - paisagem circundante. A paisagem não figura como poderosa o bastante para lhe retirar a atenção da leitura escolhida. Gide lia Bossuet e não via o Congo, reescreveríamos, com a licença poético-política de tomar Gide por um escritor euro universal, vide seu Prêmio Nobel – “[s]eu crédito universal [da Academia Sueca] torna-a a instância por excelência da legitimação literária” (Casanova, 2002:187) e “[...] a Academia ‘afirmará’ ou reafirmará, de certa forma, os veredictos de Paris e fundamentará as decisões da capital literária ‘de direito’, ou seja, segundo a lei explícita da autonomia literária: operando uma espécie de oficialização e de legalização das arbitragens de Paris [...]” (Casanova, 2002:193). Certamente, Barthes, pela via irônica, lançava aos leitores seu recado. A paisagem selecionada não era neutra. E o Congo poderia ser o Amazonas. Ou o Napo. Ou o Tapajós. Ou o Guamá. Era um rio pertencente ao que Edward Said, quase ironicamente, chama “regiões estranhas do mundo” (Said, 1995:13). Sem postular, no presente texto, qualquer similaridade, relação de semelhança entre essas “regiões estranhas do mundo” para além do fato de que ocupam a posição de não serem centrais à produção do código, a um só tempo, universal e universalizante. O escritor da cena descrita por Roland Barthes era universal; a paisagem, local. A leitura que seus olhos faziam nessa imagem, seja essa imagem ficcional ou não, provinha de sua tradição, portanto, era uma leitura “universal”. Aqui também devemos sublinhar a marca persistente de que o trabalho do escritor - entendido este como pertencente ao campo literário -, tem que ver com livros, letra escrita e impressa sobre papel e um entendimento estrito das relações sociais em prol da reprodução desse mundo escrito; e não necessariamente, ou preferencialmente, ou especialmente, com a vida concreta, com o “reino deste mundo”[1], e suas formas de produção material de uma viagem, por exemplo. Tudo isso dito com o devido respeito e reconhecimento à obra do autor[2] de Os moedeiros falsos, que, em 1952, passa a constar do Index de livros proibidos pelo Vaticano.
O que nos interessa aqui não é a interpretação feita por Barthes, mas a força da descrição dessa imagem. A paisagem se impõe ao leitor. Refiro-me à paisagem sobre a qual são inferidas inscrições de palavras ainda mais poderosas em língua francesa, aqui traduzidas. O autor Roland Barthes recorreu a essa imagem do escritor francês, não casualmente ganhador do Prêmio Nobel, representante, portanto, da Literatura Universal, e recorreu a essa paisagem caracterizando o ambiente, em relação a Paris, como o longe, o exótico, o não europeu, a alteridade inegável; e as férias, o não cotidiano, a viagem. Nessa paisagem, nenhum outro sujeito além de Gide, a não ser Bossuet. Não sabemos quê ou quem movimentava a embarcação. A frase põe em evidência as distâncias entre os dois espaços: o da paisagem e o do discurso. O da paisagem navegada e o do discurso lido. Media o tempo de seu passeio a leitura de um livro em sua própria língua. Aqui, o livro, entre o corpo e a paisagem, estabeleceu distâncias. “A última grande obra da civilização é pretender-se, unicamente, humanitária”[3]. E civilização, aqui, entende-se por civilização europeia.
Aqueles que não só encontram pertinência como acreditam no pertencimento das obras literárias à nacionalidade - sem nenhuma problematização da falta de coincidência entre as representações e interesses de diversos grupos, movimentos sociais e identidades coletivas, às versões oficiais da nação -, talvez não encontrem interesse nesse texto. Por outro lado, aqueles que reconhecem legitimidade nas lutas de várias “identidades culturais”[4], identidades coletivas que se expressam culturalmente sem coincidência com as fronteiras, narrativas e com a temporalidade oficial da nação, poderão contribuir muitíssimo para a reflexão aqui proposta:
[A] luta que opõe os profissionais é, sem dúvida, a forma por excelência da luta simbólica pela conservação ou pela transformação do mundo social por meio da conservação ou da transformação da visão do mundo social e dos princípios de divisão deste mundo: ou, mais precisamente, pela conservação ou pela transformação das divisões estabelecidas entre as classes por meio da transformação ou da conservação dos sistemas de classificação que são a sua forma incorporada e das instituições que contribuem para perpetuar a classificação em vigor, legitimando-a. (Bourdieu, 2009: 173-4)
Parte-se, portanto, neste texto, do reconhecimento de formas impróprias, de classificações que não teriam o poder de representação universal a elas atribuído e, claro, da dificuldade em dizer como essas impropriedades assim o são. A dificuldade reside, sobretudo, no fato incontornável de que a transplantação de classificações, categorias, noções não se faz acompanhar, simultaneamente, de relações sociais que produziriam essas mesmas “soluções”. Nesta experimentação quanto à territorialidade da Literatura – em geral remetida ao elemento nacional, sustentado pelo território, por fronteiras, instituições e um idioma oficial -, nos fazemos acompanhar, de certa forma, pelo raciocínio lúcido de Eduardo Lourenço que, ao escrever o texto “O Ocidente e sua deriva final” [5], desvela um “Ocidente a ocidente do Ocidente” que
foi – e em grande parte continua sendo – Novo Mundo. Apesar do baptismo, durante cinco séculos, esse ‘novo mundo’ era, no melhor dos casos, sucursal ou extensão do “velho” que só ao fim deles significará “mundo do passado” e mais cruelmente, ultrapassado. Ou, na boca imperial de Donald Rumsfeld, “velho mundo”, mundo fora da História, quer dizer, Europa, o antigo Ocidente [...] (Lourenço, 2005: 12)
Ao longo do texto, Lourenço afirma que foi “o Islão e o Oriente em geral” que definiram a Europa como Ocidente. Respalda, dessa forma, a “nova categoria” por ele postulada a respeito das Américas, a de um Ocidente a ocidente do Ocidente, invertendo Álvaro de Campos. Por isso sublinhamos a expressão “de certa forma” no trecho imediatamente anterior à citação: pela nossa dificuldade em compreender as classificações “Oriente” e “Islão”. Mas como a preocupação do presente texto trata de outra região, já bem vasta, sobre ela vamos nos deter. Não sem antes reproduzir algumas palavras mais de Eduardo Lourenço:
Onde “Colombo” morreu pouco a pouco e o Índio imortal ressuscitou foi no Canto General de Pablo Neruda, e de uma maneira geral, se exceptuarmos Borges, todos os seus pares na literatura latino-americana se votaram à invenção de uma América antes de Colombo, no esplendor da sua Natureza e da sua humanidade não devastada nem submetida (Lourenço, 2005:16).
O que nomeamos como “formas impróprias” já havia sido constatado por vários autores, em outros universos que não tão-somente o literário. Entre eles: Benedict Anderson, que as localiza como “formas de imaginação do Estado colonial” no capítulo, retirado do livro Comunidades imaginadas, “Censo, mapa, museu”; Gayatri Spivak e Judith Butler, no livro Quién le canta al Estado-Nación? Lenguaje, política, pertenencia; e Partha Chaterjee em “Comunidade imaginada por quem?”[6]. A forma como o primeiro desses autores nomeados descreve o funcionamento dessas “três instituições de poder” – o censo, o mapa e o museu - que juntas “moldaram profundamente a maneira como o Estado colonial imaginava[7] a sua soberania – a natureza dos seres humanos que governava, a geografia dos seus territórios e a legitimidade da sua ancestralidade” - demonstra claramente uma forma de imaginação que também operou, e ainda opera, nas imaginações que regem muitas das historiografias literárias nacionais (Anderson, 2005: 221-222), justamente porque se apoiam no elemento importado que é a forma de caracterização da literatura como “nacional”. Alguns “movimentos” literários rompem tão evidentemente com esse alinhamento nacional que dificultam a forma de entrada nas classificações historiográficas, produzindo o mesmo fenômeno ao qual Anderson se refere quando fala do censo: “as cômicas entradas classificatórias e subclassificatórias do censo intituladas ‘outros’ ocultavam todas as anomalias da realidade através de um esplêndido trompe l’oeil burocrático”. Caso explícito nos conceitos de “diáspora” e nas histórias do que veio a ser conhecido como “movimento da negritude”: tendo dialogado intensamente com poetas norte americanos, os poetas fundadores do movimento estavam em Paris e eram de três espaços coloniais diferentes: Martinica – Aimé Cesaire-, Guiana Francesa – Léon-Gontran Damas[8] – e Senegal – Leopold Sédar Senghor.
Corpus bibliográfico e dois estudos de caso
Servem os mapas literários? Antes de mais nada, são um bom modo de preparar um texto para análise. Franco Moretti
A título de relato, descrevo a proposta de implantação da disciplina Literatura da Amazônia apresentada em 2009 à UFPA[9]. Tal proposta procedeu à divisão em três partes do repertório de leitura indicado na bibliografia. Essa divisão obedece, em primeiro lugar, a uma tentativa de descrever a dimensão do campo, sem, contudo, esgotar o tema. O prazo de um semestre torna-se exíguo para a leitura de toda a bibliografia durante o período do curso, mas tentamos manter as referências bibliográficas para efeito de pesquisa sobre um possível desenho do campo, que não entendemos como campo de fronteiras fixas, mas um campo situacional. A primeira parte estava referida a trechos da Literatura chamada “dos Viajantes” e aos comentadores dessa Literatura[10]. As observações e “quimeras” aqui reunidas partem de um poderoso arsenal de mitos que foi se consolidando ao longo dos últimos séculos, a começar pelo nome da região. Em relação a este arsenal ativado no imaginário “ocidental”, a região, ainda hoje, padece, ao ser obrigada a se ver confrontada com expectativas construídas a partir do outro e para o outro.
A segunda parte refere-se a romances, poemas, contos e crônicas publicados por escritores ou oriundos da região ou que tiveram nela experiência transformada em experiência literária[11] publicada. Aqui pululam mais nomes do que poderíamos abarcar ao longo de um único semestre, somando-se à diversificada produção que também poderia ser incluída tanto na primeira quanto na terceira parte. Para efeito de construção do campo, essa segunda parte precisa levar em consideração a multiplicidade de línguas nas quais as obras são escritas[12].
Já na terceira parte, contamos com os documentos próprios das memórias e da constituição de patrimônios culturais. Algo que comumente seria chamado de “literatura oral”, ultrapassando, em realidade, esta denominação. Sublinhamos a importância de se trabalhar com o conceito de Patrimônio Intangível. É a parte mais desafiante do trabalho, pois é necessária a atenção aos mais variados discursos produzidos pelos sujeitos que habitam a região, ao trabalho de pesquisa em arquivos e a leituras sempre a serem atualizadas. A dificuldade já foi constatada pela pesquisadora chilena Ana Pizarro quando de seu artigo, apresentado em 2004, “Voces del seringal”. A parte mais importante dessa pesquisa, que confirma uma tendência do “impulso geográfico” localizado por Said e, de outra forma, por Moretti, diz respeito ao lugar da enunciação: são os habitantes da região produzindo seus discursos. As formas de acesso a esses discursos tampouco são neutras e devem ser levadas em consideração como significativas da construção do campo. Consta de depoimentos, testemunhos, relatos, memórias, entrevistas que dão conta do presente dessa região, dos conflitos a respeito do território, das migrações forçadas, das impropriedades administrativas em nome de projetos de desenvolvimento jamais sustentáveis socialmente, das narrativas de resistências e de identidades forçadas a desaparecer a partir de um processo de “assassinato cultural”[13], próprio do desenvolvimentismo instaurado por um processo de “modernização conservadora” realizado em nome da “nação”. Em outras palavras, todo um repertório discursivo – que se serve de memória, imaginação, expectativas e procedimentos criativos para representá-lo -, que não entra na linearidade explicativa de uma História da Literatura colada ao território oficial e às fronteiras disciplinares e descolada das práticas reais de organização das identidades coletivas que expressam um patrimônio cultural, tangível e intangível. Também expressa essa mesma preocupação em relação à “agenda” das formas literárias, um livro que se publicou, há poucos meses: o ensaio premiado com o Casa de las Américas, em janeiro de 2012, de Ana Pizarro. Nesse ensaio, funciona o reverso de uma historiografia oficial da nação que vem sempre colocando para funcionar uma “máquina de produzir o moderno”[14] ou o “pós-moderno”, à custa de obscurecer as inscrições que não contemplam as formas literárias já consagradas e nem mesmo podem ser subscritas às já tradicionais formas transgressoras do campo literário. Nesta terceira parte, trabalhamos com múltiplas publicações que foram feitas por identidades coletivas e movimentos sociais da Amazônia - que se autorrepresentaram em forma de depoimentos, mapas, desenhos, narrativas, poemas - e trazidas a público, em grande parte, com o apoio do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia[15]. Como exemplaridade de livro construído a partir de documentos da implantação de uma “modernização conservadora”[16], como memória a ser evocada pelos “refugiados do desenvolvimento”[17], incluímos o estudo, quase um roteiro cinematográfico, de Francisco Foot Hardman, intitulado Trem-fantasma – A ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na Selva. Há, também, uma série de registros cinematográficos, tanto ficcionais quanto documentais.
Edward Said (1990: 69-95) propõe que se o imperialismo é uma forma de violência que se expressa geograficamente, a afirmação simbólica do território, a partir da recolha de suas inscrições, tornadas simbólica e valiosamente literárias, desempenhará um papel estratégico de descolonização com vistas a tornar a história dos ex-colonizados em história própria, particular, redesenhando uma identidade geográfica que, ao ser violentada, perdeu a possibilidade de decidir sobre seus contornos e formas. Uma proposta seria, justamente, unir memória e imaginação a este impulso geográfico, sob novas formas literárias e a partir de novos sujeitos sociais. Não obstante, os estudos não terão validade se o interesse for universalizar identidades. O impulso será o da cartografia de diferenças, de particularidades, de singularidades textuais que não podem ser arroladas ou reduzidas a séries normativas. Repensamos, aqui, frente à demonstração da sociodiversidade cultural encontrada nessa região, o significado de “cosmopolita”, para não voltarmos a uma discussão perversa entre o regional e o universal, como se somente a fixa dualidade pairasse sobre as possibilidades de organização da imaginação humana. Em contexto latino-americano, temos exemplos vários dessa discussão que só produziu a certeza de que o caminho de algo novo para o pensamento e a interculturalidade latino-americana não é dual. A título de citação, lembremo-nos da polêmica entre o argentino Cortázar e o peruano Arguedas, em que o universal era postulado como única alternativa para o cosmopolitismo, e o local como nacionalismo provinciano ou regionalismo.
A região [...] define por si mesma os parâmetros do próprio significado e da própria identidade”, escreve Ian Duncan, “enquanto a província é definida por sua diferença [da capital]”. Exatamente. Vila e região foram por longo tempo, e são ainda em parte, possíveis pátrias alternativas em relação ao estado-nação; a província marca, ao contrário, a capitulação da realidade local à cidade capital. [...] Como as antigas provinciae, subordinadas a domínio à distância de Roma, a província é uma realidade “negativa”, definida por aquilo que não existe[18] [...] (Moretti, 2008: 89-90)
Própria de uma retórica do ressentimento – justificadamente –, essa reação das ex-colônias colocam a questão exatamente nos termos em que a construção etnocêntrica de Ocidente almeja: uma relação sem saída. A não ser a já oferecida: fortalecer os dispositivos da nação, entre eles estaria sua história literária e cultural. Ou seja, restaria nos armarmos de idéias que conjuguem o conceito de nação a um operador da cultura etnocêntrica: a modernidade, modernização e seus desdobramentos[19]. Constroem-se, assim, as correntes de transmissão de riquezas materiais e imateriais imprescindíveis à manutenção desses dois conceitos e do lugar de poder dos mecanismos legitimadores dos valores universais[20]. Homi Bhabha fez duas observações, numa entrevista recente, que revelam insatisfação com a forma como são narradas e, portanto, imaginadas as identidades contemporaneamente, tanto a universal quanto a nacional: “ninguém tem um passaporte global” e “[a]s obras literárias que só recitam um credo nacional não têm nenhum interesse. Só interessam a políticos tiranos”.
I-Dalcídio Jurandir: à guisa de histórico
Em 2009, foi celebrado o centenário do escritor nascido na Ilha do Marajó, Amazônia, Dalcídio Jurandir (1909-1979). A propósito dessa comemoração, fui convidada para participar do evento “Dalcídio para todos” durante a Feira Pan-Amazônica do Livro, em Belém do Pará, que tinha a efeméride como justificativa para homenageá-lo. Em virtude de minha pesquisa com os arquivos que estavam e estão na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, o organizador do evento, Professor Gunter Pressler, ofereceu-me lugar numa mesa em que se debateria o tema “Acervos”. Aceitei, decidindo-me, então, a contar um pouco da experiência com o arquivo de Dalcídio e um pouco da leitura que eu vinha fazendo em torno da obra do escritor e que privilegiava o tema da aproximação entre os universos da Literatura e da Antropologia. Contei, portanto, como venho me aproximando da obra do escritor Dalcídio Jurandir.
No primeiro semestre de 2008, repetindo aqui o relato feito no dia e local do evento citado, eu havia localizado nos arquivos constantes da Casa de Rui Barbosa, em uma carta cujo destinatário era o escritor marajoara Dalcídio Jurandir, menção a um “Professor Carlos”. Era um convite, que partia de uma das damas locais de uma pequena localidade urbana amazônica, para que Dalcídio comparecesse a uma reunião em sua casa acompanhado do “Professor Carlos”. A carta também citava um “Eduardo”. Busquei apoio para “os personagens” constantes da carta no índice do arquivo. Não tendo encontrado nenhuma “entrada” no índice que fizesse menção a esses nomes, procurei uma das pesquisadoras da Casa Rui Barbosa para conversar. Soraia Reolon Pereira havia sido a pesquisadora da Casa responsável por catalogar as referências do arquivo e, também, até então, por reeditar a obra de Dalcídio. Sendo ela, portanto, a pessoa mais indicada para a orientação sobre o conteúdo do acervo. Encontrei generosidade em sua orientação sobre os dados do acervo. No entanto, ela também não sabia dizer quem era “Professor Carlos”. Perguntei a ela se não havia visto nenhuma menção a “Charles Wagley” em algum dos documentos ali depositados. Ela me disse que não sabia do que se tratava. Informei a ela, então, que eu estava em busca de cartas e documentos do período que Dalcídio havia trabalhado junto a Wagley, o antropólogo norte americano. Ela disse que desconhecia tal fato; no entanto, muito gentilmente, me sugeria não desistir da procura, pois ela havia classificado preliminarmente os documentos desconhecendo essa relação, e o inventário desse arquivo ainda não estava pronto, seguia em processo. Havia a possibilidade de que eu encontrasse algo ali ou, ainda, em arquivos do escritor que existiam em posse da família e que não se encontravam na instituição.
Tive contato pela primeira vez com a obra de Dalcídio Jurandir num curso voltado para edições críticas que foi ministrado na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 2004, por pesquisadores da instituição. Soraia Reolon Pereira e a também pesquisadora da casa Marta de Senna abordaram a obra do marajoara durante o curso. Naquele momento, elas preparavam o que viria a ser uma edição cuidadosa de Belém do Grão Pará, um dos romances de Dalcídio Jurandir - pertencente ao que se convencionou chamar “Ciclo do Extremo Norte”, e que consta de dez romances, excetuando um décimo primeiro, Linha do parque. O “Extremo Norte”, no caso, refere-se à Amazônia, onde se desenvolvem as ações desses dez romances. Linha do parque se excetua por tratar de tema operário vinculado ao sul do Brasil. As duas pesquisadoras distribuíram, entre os alunos do curso mencionado, trechos do romance dalcidiano Belém do Grão Pará e, pela sala, alguns dicionários. Instaram os alunos a consultar os dicionários quantas vezes fossem necessárias à completa compreensão dos significados das palavras usadas pelo autor da obra. Esse procedimento, por si só, é revelador da dificuldade com a linguagem que elas esperavam de um leitor do Rio de Janeiro, mesmo sendo um público de estudiosos de Literatura, doutores e doutorandos em Literatura, um público formado por leitores “tão brasileiros” quanto o autor. A minuciosa atenção a detalhes da linguagem não revela somente um vocabulário a ser pensado como regionalista por descrever objetivamente uma realidade local diferente da realidade do sudeste. Para além da questão regional, revela um uso da língua bem particular, no qual inclusive verbos podem ser utilizados no diminutivo, e palavras oriundas de outras línguas são apropriadas – caso de “biguane”. É fato que são falares locais[21]. Mas esse fato revela desconforto e a impossibilidade de comunicação fluida no âmbito da língua oficial imposta pelo centro, substituindo o colonizador. Essa consulta ao dicionário desautomatizava, por instantes, a linguagem que o centro, por estar mais próximo do poder que filtra e promove o nacional, tem como padrão[22]. O cuidado etnográfico, notado por mais de um produtor intelectual a respeito da obra de Dalcídio, povoa sua obra. Por outro lado, podemos constatar ali um público de estudiosos de literatura que, em sua grande maioria, jamais tinha tido contato com nenhuma manifestação cultural do norte do país. O que nos faz questionar a representatividade do que vem sendo ensinado nas escolas e universidades como “Literatura Brasileira”, excluindo-se, nessa disciplina, a produção discursiva de mais de sessenta por cento do território brasileiro, que é o espaço ocupado pela Amazônia[23]. Há uma interpretação histórica a respeito do “regionalismo como programa e critério estético” presente no já clássico Formação da Literatura Brasileira, que julgamos pertinente reproduzir aqui:
A unidade política, preservada às vezes por circunstâncias quase miraculosas, pode fazer esquecer a diversidade que presidiu à formação e desenvolvimento da nossa cultura. A colonização se processou em núcleos separados, praticamente isolados entre si: o desenvolvimento econômico e a evolução social foram, assim, bastante heterogêneos, consideradas as diferentes regiões. Um historiador contemporâneo, Alfredo Ellis Jr., se recusa a falar em Colônia, ou Brasil Colônia, acentuando o fato [...] de que houve na América não uma, senão várias Colônias portuguesas. Trazendo a ideia para o terreno literário, Viana Moog procurou interpretar a nossa literatura em função das que chamou ‘ilhas de cultura mais ou menos autônomas e diferenciadas’, caracterizada cada uma pelo seu genius loci particular. (Antonio Candido, 1975: 298)
No entanto, não parece pairar dúvida alguma nas conclusões dessa interpretação, a de que tal fato, o da “unidade política” da nação imbricado com tal “programa” regionalista, concorre para enriquecer a identidade literária nacional. O regional, sendo apropriado pelo nacional, realiza a homologia necessária entre processo narrativo e construção da nação. Frisamos que o “regional” nesse “programa” diz respeito nomeadamente ao Nordeste[24] e escritores de lá provenientes. É importante lembrar aqui de personagens de um dos romances mais representativos do chamado “regionalismo”: o casal de Vidas secas, de Graciliano Ramos, que sonha em escapar da aridez, deixando a região de origem em direção ao que poderia ser o mais moderno, o mais racional.
É precisamente no sonho dos personagens que a obra de Dalcídio parece escapar dos padrões regionalistas. Em especial, no romance Belém do Grão Pará. O sonho do personagem principal, alter-ego de Dalcídio, um menino por volta de seus doze anos chamado Alfredo – personagem retomado em vários romances do “Ciclo do Extremo Norte”-, põe em cheque o racionalismo, caminho da modernidade e, portanto, o da nação, ao fazer notar, ao longo de toda a narrativa, que escreve com saudade da ilha, do “carocinho de tucumã” mágico, que o ajudava a criar histórias. Saudade esta associada ao sonho com o elemento menos urbano: quando questiona a “educação” que tem na cidade; quando demonstra inveja da forma livre como a menina que lá ficou no Marajó, sem estudar, Andreza, escreve suas cartas; ao narrar que a primeira utilização que pode dar ao “quadro de honra”, ganho na escola da capital, é utilizar a fita de cetim que o embala para embrulhar um presente para Andreza; e, especialmente, quando critica os hábitos modernos da cidade, tão em contradição com as formas de sustentação material desses hábitos e tão em contradição com a singularidade da vida humana: logo ao desembarcar, vê uma menina sendo negociada como mercadoria para servir a uma das famílias da cidade, situação com a qual ele mais adiante terá que conviver por causa da personagem Libânia. O assassinato da infância aqui antecipado é narrado próximo a um cadáver:
E logo sentiu obscuramente que a morte na cidade se despojava daquele pudor, decência e mistério que a todos transmitia em Cachoeira. Lá ‘fazia mal’ deixar um morto assim, o morto era inviolável, tocava-se nele para lavá-lo, vestir, cruzar-lhe as mãos, pô-lo no caixão ou rede, entregue unicamente à sua morte. [...] Não ficaria nunca ali naquela pedra, sem nome, vela ou origem, igual peixe no gelo. Isso doeu no menino, [...] Em meio de seu desalentado assombro, o menino teimou agora em parecer o menos matuto possível, para achar tudo aquilo muito natural. Compreender a cidade, aceitá-la, era a sua necessidade. Ser amado por ela, saboreá-la com vagar e cuidado, como saboreava um piquiá, daqueles piquiás descascados, cozidos pela mãe, receando sempre os espinhos. (Jurandir, 2004: 85)
É no instante mesmo que tenta se convencer em amar a cidade, que Alfredo revela sua dificuldade: a metáfora para esse amor passa por uma cena da ilha, dos piquiás que comiam junto da mãe, como se a delícia da cena pudesse se repetir em outro cenário. Desvela-se, portanto, em seu texto, um incômodo que irá se relacionar com tudo o que indica a modernidade e o preço a ser pago por ela, pela forma de vida na cidade: sem nos esquecermos que sua melhor amiga na cidade passará a ser Libânia, menina “utilizada” para trabalhos pesados na casa da família que irá recebê-lo, a menina que não tem sapatos. E essa constatação lhe trará mais um desassossego. No romance aqui analisado de Dalcídio, o sonho vai cada vez mais em direção ao que seria uma solução menos moderna, menos citadina, menos, portanto, vinculada à construção das narrativas da nação. Em Graciliano, a aridez e a racionalidade fazem sonhar com o deslocamento. Em Dalcídio, o deslocamento torna-se um questionamento sobre se não seria um equívoco de direção. A saudade e a memória dos campos livres de Cachoeira, hoje tão cheios de conflitos e cercas, não lhe deixa entregar seu sonho de juventude a nenhum sonho de progresso, modernização ou nacionalidade. Indignava-se:
Mas fazia parte de sua educação carregar o saco de açaí, levar as pules no bicho, apanhar as achas de lenha, ajudar Libânia trazer o saco de farinha, as rapaduras lançadas pelo maquinista na passagem do trem, raptar um menino? Era a obrigação de servir a casa alheia por não ter senão trinta mil-réis de mesada? Ia aos poucos compreendendo, mais exatamente, o que é isso de “faltar dinheiro”. Por ser aqui uma cidade, dinheiro fazia mais falta nos Alcântaras que no chalé. E isso lhe dava um desânimo, uma desilusão. (Jurandir, 2004: 210).
Num determinado momento, pergunta a Libânia, sua amiga menina, pouco mais velha que ele, criada da casa: “Tu gosta de dinheiro, Libânia?” Ao que ela responde: “Nunca tenho, não sei. Olha, o Demônio me meteu na cabeça que devo ir contigo agora-agora no Bosque.” (Jurandir, 2004: 211) Ainda que não tenha sido de todo consciente, faz-se notar que o sonho de Dalcídio não contemplava o moderno sonho da nação e, ainda hoje, como pode atestar a ausência de seu nome de tantos projetos importantes de historiografia da literatura brasileira[25], não faz sonhar um conjunto amplo de leitores de literatura vazada em forma de romance, essa forma moderna por excelência. E, em se tratando ainda de sonhos e saudade, vários outros personagens do romance sonham e têm saudade, mas numa direção completamente diversa do sonho e da saudade do menino Alfredo: sonham com a modernidade que poderiam ter e não tiveram com o ciclo da borracha. Eles têm saudade do que a borracha prometia para a cidade e, num determinado momento, cumpriu, em parte: eles almejam a cidade moderna. Alfredo almeja o chalé e a ilha, os campos alagados ou não do Marajó. Como se sua literatura estivesse sempre em fuga, no caminho contrário ao projeto modernizante da cidade. Dalcídio escreve com saudade de outra forma de organização da vida, o que equivale a dizer, outra forma de organização do tempo e do espaço. Apesar de ter vivido décadas, até morrer, no Rio de Janeiro, em sua fase adulta, jamais escreveu uma linha sobre a cidade em que vivia. Com essa direção, se não contrária, ao menos divergente, do caminho postulado para a modernidade, dificulta-se a identificação do leitor de romances, em grande parte, consumidor habitante da cidade, como parecem atestar os números obtidos pela conclusão de estudo feito por Regina Dalcastagnè na UnB: há uma coincidência entre autor e protagonistas que, em sua grande maioria, são urbanos e “brancos”. A própria forma romance, que floresce com a modernidade, esbarra em seus limites. Na “aquonarrativa”[26] de Dalcídio, tudo reflui para as águas da Amazônia, sem vontade de ter de lá saído. Sendo assim, se a narrativa dalcidiana tem algo de épica, no sentido de contar uma aventura coletiva, é justamente dessa identidade coletiva que não se adapta ao universal postulado pela “modernidade conservadora”: seria um épico, forma ocidental, neste caso, em desacordo com o Ocidente. Um “Ocidente a ocidente do Ocidente”, como fabulava Eduardo Lourenço. Escreve Huizinga: “O conteúdo deste ideal [o sonho] é um desejo de regresso à perfeição de um passado imaginário [...] Mais forte e mais duradoura de todas é a ilusão de um regresso à natureza e aos seus inocentes prazeres pela imitação da vida pastoril. Desde Teócrito ela nunca deixou de dominar as sociedades civilizadas.” (Huizinga, 1924:10) A palavra “ilusão” aqui desconsidera vivências concretas, realidades objetivas que pulsam longe do ideal moderno de racionalidade citadina elaborado por um determinado “Ocidente”.
Em um dos ensaios do livro A clave do poético, Benedito Nunes interpreta, elegantemente, a separação entre os dez romances que integram o chamado “Ciclo do Extremo Norte” e o romance Linha do parque através da chave do processo heteronímico pessoano. Tece esta interpretação dizendo que serviam a projetos diferentes: enquanto o ciclo cumpre o sonho de juventude de Dalcídio de escrever a saudade, ou seja, suas memórias de infância e juventude entre Marajó e Belém, especialmente através do personagem Alfredo, Linha do parque atenderia a outro sonho de Dalcídio, qual seja: a luta política através do partido. É interessante notar nessa observação feita por Benedito que, se seguirmos o caminho proposto pelo crítico, resta inferir que Dalcídio apresentava uma cisão: evidenciada por dois sonhos que seriam inconciliáveis num mesmo projeto literário. De acordo com Benedito Nunes, a solução encontrada pelo autor é uma espécie de heteronímica pessoana, visto que não há a entrega do sonho de juventude de seu projeto literário amazônico ao partido. Para contemplar o partido com sua escrita, vai viver algum tempo no sul, e lá escreve Linha do parque, a partir de conflitos operários locais. Preserva, assim, o projeto acalentado de escrever a geografia de sua memória afetiva, as suas paisagens, onde mescla sua vivência e, certamente, representa vidas com as quais conviveu durante infância e juventude entre Marajó e Belém. Ou seja, são dois tipos de escrita de projetos coletivos: o “nós” presente no “Ciclo do Extremo Norte” tem um significado diferente do coletivo que poderá ser encontrado no romance sobre a revolta operária no sul. E nos dois projetos coletivos, os operários do sul, e a “aristocracia de pé no chão” - como o escritor chama seus personagens conterrâneos em uma entrevista -, Dalcídio está engajado. De maneiras distintas, porém. Inferimos, a partir da leitura de Benedito, que há um movimento de inclusão e exclusão em cada um dos projetos. Daí nossa hipótese de cisão. Tal qual ocorre na língua tupi, onde dois pronomes são necessários para designar “nós”, um inclusivo e outro exclusivo, o que torna essa língua irredutível às traduções para qualquer língua europeia, que dispõe de um só pronome para a dupla função. A respeito do uso desse pronome, Moretti assinala a distinção entre a função do pronome “nós” nas narrativas coletivas, publicadas por Berthold Auerbach[27], provenientes de povos da Floresta Negra, e compara o uso do pronome nessas narrativas ao uso do “nós” em vinte e dois (Moretti, 2008: 88) hinos[28] nacionais de países europeus. “‘Açúcar, café e sal: nada, além disso, nos servia do mundo externo’, declara, orgulhosa, a protagonista de uma outra narrativa de vila, a Brigitta, de Berthold Auerbach. Mas o passado daquele ‘servia’ sugere que os dias de autossuficiência estão contados.” (Moretti, 2008: 76) Neste exemplo, ele demonstra o uso do pronome “nós” com característica exclusiva e a irrupção de uma necessidade imposta desde o “mundo externo” para que esse pronome não mais se estabilize em termos exclusivos. Estendendo o sentido de exclusividade desse pronome “nós”, voltamos a Belém do Grão Pará. Para o narrador, a exclusividade de seu universo de pertencimento aparece evidenciada, sobretudo, na relação, ainda que imaginária, com Andreza, que está no Marajó: “[o]s sentimentos de Andreza estavam dentro dele como abelhas na flor” (Jurandir, 2004: 172). Ou, ainda:
Alfredo levava Andreza consigo, todas as meninas que nunca viram uma cidade, todas no seu bolso, na mão, agarradas ao seu pescoço, todas iam encontrar, lá no Bosque, o que mais desejavam. Ou simplesmente ver o Bosque. E achava mais cruel a morte de sua irmã Mariinha, por não ter podido ver o que ele ia ver agora. (Jurandir, 2004: 211)
Em outros momentos, Libânia ocupará um pouco este lugar de “comunhão”, sem nunca, no entanto, pertencer a seu sonho de viagem de volta, o Marajó.
Retornando à relação de Dalcídio Jurandir com o universo da Antropologia e seu trabalho com Charles Wagley, eu a aprendi a partir de conversa com o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, em 2006. Posteriormente li, em livro desse mesmo antropólogo, Antropologia dos Archivos da Amazônia, publicado em 2008:
Além de José Veríssimo e Inglês de Sousa, que aparecem citados em diversos trabalhos científicos, tem-se o romancista Dalcídio Jurandir participando diretamente do trabalho de pesquisa dos antropólogos C. Wagley e Eduardo Galvão. Nas palavras de Galvão: “Exceto em alguns romances de feição original, de que destacamos o excelente Marajó, de Dalcídio Jurandir, e ensaios, notadamente os de Veríssimo, crenças, instituições e hábitos religiosos do caboclo têm sido descritos sem referência à vida quotidiana do povo e sem a necessária análise do meio social e das relações entre as instituições religiosas e as outras que compõem o todo cultural. Ideias e conceitos são apresentados como elementos espúrios, desligados de sua função dentro do sistema religioso e do papel que realmente desempenham na vida do caboclo.” (Galvão, 1955: X; Almeida, 2008: 68)
Quanto aos arquivos da Casa Rui Barbosa, observei datas e contexto da carta já mencionada e levantei a firme hipótese de que o “professor Carlos” fosse Charles Wagley, com nome aportuguesado, e “Eduardo” fosse Eduardo Catete Pinheiro ou Eduardo Galvão. Dalcídio havia trabalhado com ambos e ambos haviam trabalhado com Wagley; tendo Eduardo Galvão sido orientado, como aluno, em sua tese de antropologia, por Charles Wagley. Argumentei a favor dessa referência com Soraia Reolon Pereira e ela decidiu anotar nomes e referências para posterior verificação. O trabalho de inventário da parte do arquivo depositado pela família na Fundação Casa de Rui Barbosa segue inconcluso.
O encontro da obra de Dalcídio Jurandir com o conceito de etnografia foi produtivo em mais de um sentido, sem, no entanto, reduzir a obra de Dalcídio ao domínio da antropologia ou mesmo da etnografia. E tal fato já havia sido notado alhures, em textos de autores de ampla circulação, por exemplo, como em Eduardo Galvão e Câmara Cascudo, ou em textos de autores mais contemporâneos, como Raimundo Heraldo Maués ou a obra coletivamente organizada Sociedades caboclas amazônicas. Em outras palavras, a obra de Dalcídio não passa invisível pelos olhos de autores relacionados à antropologia da Amazônia.
Um dos volumes de boa e segura informação etnográfica é o romance Marajó do Sr. Dalcídio Jurandir O documento humano não foi empurrado e comprimido para caber dentro de uma tese, mas vive, livre e natural na plenitude de uma veracidade verificável e credível. Certamente há outros ângulos para a visada nesse romance magnífico. Cabe-me fixar o que me interessa real e honestamente, o que pertence ao meu mostruário, como diz Anatole France [...] Para mim, a terceira leitura do Marajó foi “test”. Percorri o romance anotando o material que utilizaria. Qualquer deformação intencional, qualquer invenção infeliz, qualquer enfeite literário chamar-me-ia a atenção fatalmente. Os vinte anos de pesquisa me deram o direito de faro de cachorro fiel ao assunto que, na espécie, é o homem em sua normalidade diária, sem decoração, nem retórica, m [sic] interpretação. Marajó é um volume feito com a verdade cotidiana, com a paisagem exata, com as fisionomias possíveis da existência. É o seu melhor elogio para um etnógrafo. (Cascudo, 1948)
O reconhecimento de sua contribuição não se limita àqueles com quem trabalhou mais diretamente, seja Wagley, seja Galvão. Na introdução a Sociedades caboclas amazônicas, publicada em 2006, os organizadores da obra chamam a atenção para a importância da produção intelectual de Dalcídio para os estudos da região.
Para a maior parte dos acadêmicos contemporâneos, o marco fundador no estudo antropológico das sociedades caboclas ainda são os estudos de Charles Wagley e Eduardo Galvão. Estes estudos descendem claramente, na sua origem americana, dos estudos culturalistas, do particularismo histórico boasiano e da ecologia cultural de Julian Stewart. Porém, poucos estão atentos à produção intelectual local representada por nomes como José Veríssimo e Dalcídio Jurandir, entre outros, que muito influenciou esta suposta geração espontânea da academia profissional. Estes primeiros forjadores do imaginário regional, e declarados propositores da identidade moderna amazônica como o próprio objeto de suas reflexões, foram invisibilizados por outras formas de imperialismo. (Adams, Murrieta e Neves, 2006: 18)
Ao me referir ao dia no qual falei pela primeira vez sobre Dalcídio na Feira, em 2009, cabe ressaltar que o público presente se constituía, basicamente, de alunos da UFPA, onde, naquele momento, eu ministrava aulas no Departamento de Letras – tendo criado a disciplina “Literatura da Amazônia” – e de alunos de História. Neste caso, lembro-me de um aluno chamado Frederik, pelos comentários posteriores a minha fala. Ele havia feito uma pesquisa junto a Renato Gimenez, convidado, também, por Gunter Pressler, para tratar do tema “Acervos” no evento, já que eles, o pesquisador Renato e o aluno Frederik, realizaram pesquisa em escolas onde Dalcídio havia estudado. Também fazia parte do público membros da família de Dalcídio. Estavam presentes pesquisadores, entre eles Gunter Karl Pressler, organizador do evento e pesquisador de Dalcídio há muitos anos, e Willi Bolle, que havia sido, anos antes, orientador de Gunter Pressler em sua tese de doutorado na USP e, por intermédio do orientando, havia tomado conhecimento do autor marajoara. José Varella, entusiasta e pesquisador de temas amazônidas, além de ligado por parentesco à família de Dalcídio, também presente, fez uma pequena provocação, bem humorado, ao fim de minha fala, dizendo que se soubesse que eu trataria da relação Dalcídio-Wagley teria tentado me dissuadir. Afinal, tínhamos dois alemães presentes e a missão de Wagley fazia parte do esforço de guerra. Foi a vez, então, do professor Willi Bolle perguntar um pouco mais sobre a relação Dalcídio-Wagley, querendo saber sobre datas, títulos de obras do antropólogo e circunstâncias. Decidi, ao fim do evento, presenteá-lo com o livro Antropologia dos Archivos da Amazônia, do antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, já citado, para que tivesse à mão todas as informações. Novamente constatei o fato de que o campo literário visita com menos frequência a Antropologia do que o caminho inverso.
Uma comunidade amazônica, um livro já clássico da Antropologia, escrito por Charles Wagley e publicado, por primeira vez, em 1953, cita Dalcídio Jurandir logo no prefácio à primeira edição.
Voltei a Itá em 1945. Nessa ocasião, acompanharam-me Eduardo Catete Pinheiro, um especialista em educação sanitária e filho daquela região, e Dalcídio Jurandir, conhecido romancista brasileiro que estava escrevendo os textos dos programas educativos que o SESP pretendia realizar no Vale Amazônico. Em sua primeira mocidade, Dalcídio vivera em Itá, onde servira como secretário do prefeito da localidade. Seu profundo conhecimento da vida da cidade e o grande círculo de amigos a que me apresentou, tornaram-me possível aprender mais a respeito de Itá, em um mês, do que teria conseguido em dois meses sem o seu auxílio. Catete Pinheiro e Dalcídio Jurandir, pela própria formação de suas vidas, muito me ensinaram sobre a Amazônia. (Wagley, 1988: 21)
Tal citação faz com que o nome do autor do “Ciclo do Extremo Norte” circule frequentemente entre antropólogos, levando em consideração, especialmente, a forma de trabalho que atenta para as formas de circulação da informação. A circulação do nome de Dalcídio, até internacionalmente, provavelmente ocorre mais nos meios antropológicos que literários, tendo em vista que um pleito comum da maioria dos pesquisadores que trabalham a obra deste escritor seja justamente um lugar na história canônica da Literatura Brasileira[29]. Para exemplificar essa situação, basta dizer que a primeira vez que ouvi falar em Dalcídio foi durante o referido curso em 2004 da Casa Rui Barbosa, tendo, portanto, já concluído doutorado em Letras[30]. Nem na graduação, nem no mestrado e doutorado - todos em Letras -, eu jamais havia escutado ou lido sobre o autor dos romances: Belém do Grão Pará, Três casas e um rio, Chove nos campos de Cachoeira, Ribanceira, Os habitantes, Primeira manhã, Passagem dos inocentes, Chão dos Lobos, Ponte do galo e Marajó.
Confirmamos, no caso de Dalcídio, a observação de Ana Pizarro: o interesse sobre a Amazônia foi sempre maior entre pesquisadores da Antropologia. Decorre daí um motivo a mais para construirmos esse campo da “Literatura da Amazônia” sempre em diálogo além fronteiras: sejam as da nação, sejam as do campo disciplinar. É bem verdade que todo campo também é feito de relações institucionais que estarão sob a égide de um Estado. A necessidade se faz de experimentar a palavra “Estado”, no campo literário, sem agregar-lhe um projeto homogeneizador e totalizante guiado pela palavra “nação”, agregada por um hífen onipresente.
II- Ferreira de Castro
Nem é preciso dizer que a obra de um escritor ocidental é automaticamente investida de universalidade. Só os outros precisam lutar para conquistá-la.
Chinua Achebe
A forma como se chega comumente a outro autor que figura na bibliografia aqui considerada prioritária da Literatura da Amazônia é totalmente diferente do que ocorre com Dalcídio Jurandir. Trata-se de Ferreira de Castro (1898-1974). Entretanto, vale lembrar que é Ferreira de Castro quem apresenta o autor de Belém do Grão Pará em sua única publicação em Portugal. O prefácio escrito para o livro de Dalcídio é referido na cronologia da obra do escritor português como um dos seus últimos escritos. E as palavras dele acerca do romance de Dalcídio são
Apesar de celebrado, desde há anos, pelos maiores críticos literários do Brasil, como um dos mais importantes romancistas actuais do seu país, tão rico de ficcionistas, Dalcídio Jurandir era, até agora, desconhecido em Portugal. E perfeitamente se compreende que a sua obra, ao aparecer pela primeira vez entre nós, carecesse de alguém, situado no átrio, a explicar quem é o seu glorioso autor. (Ferreira de Castro, In: Jurandir, s. d.: p. 12)
Enquanto os estudiosos de Dalcídio Jurandir, contemporaneamente, pleiteiam um lugar para o autor na historiografia canônica da literatura nacional brasileira, Ferreira de Castro, seu prefaciador, é referência obrigatória da História da Literatura portuguesa. É este mesmo ícone da literatura portuguesa quem se afeta em apresentá-lo “como um dos mais importantes romancistas” do seu país, “celebrado, desde há anos, pelos maiores críticos literários do Brasil”. As palavras de Ferreira de Castro são importantes para a construção de uma história da recepção do livro de Dalcídio Jurandir em Portugal. O escritor português é considerado marco de referência para os autores constituintes do que veio a ser conhecido como neorrealismo português, e este movimento, por sua vez, foi referência dialógica para o universo de temas que a literatura de Saramago viria a tratar[31]. Todavia, entre as palavras dele e as preocupações dos estudiosos contemporâneos da obra de Dalcídio Jurandir, há uma forte contradição, criada pela constatação de um processo de invisibilização e ou subtração da importância do autor marajoara nos cenários criados pelas historiografias literárias nacionais. Longe de estar enganado, Ferreira de Castro[32] estava informado pela sua época, pelas circunstâncias de seu tempo, que contavam, entre elas, com as penas ainda em uso de vários grandes nomes do campo literário no Brasil. Dentre os muitos nomes fortes de nossa Literatura, escreveram sobre a obra do amazônida: Jorge Amado, Nelson Werneck Sodré, Moacir Werneck de Castro, Otto Maria Carpeaux[33]. Em 1972, inclusive, a Academia Brasileira de Letras havia concedido ao autor marajoara o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra, entregue pelas mãos de Jorge Amado.
A forma como o nome do escritor Ferreira de Castro chega aos leitores estudiosos de literaturas de língua portuguesa é através do incontornável e canônico estudo História da Literatura Portuguesa, de Saraiva e Lopes, utilizado, em larga escala, nas graduações em Letras dos países de língua oficial portuguesa. Ainda que a obra não seja diretamente estudada, lá estão o nome, as referências e as considerações acerca de seu lugar na historiografia literária de Portugal. Além disso, vários outros estudos, dos mesmos autores e de outros portugueses, nos fornecem uma rica fortuna crítica que nos informa acerca do impacto da obra deste autor.
O terceiro grande prosador desta primeira parte do século já não tem nada que ver com Eça nem com Camilo: é Ferreira de Castro [...] Teve uma aprendizagem pouco comum entre os escritores portugueses: foi seringueiro no Brasil, o que significa ser pouco mais do que escravo, numa plantação de borracha. Com Emigrantes e A selva entra na literatura portuguesa pela primeira vez a experiência do proletário e entra também o grande espaço, a floresta amazónica. Ademais, como Ferreira de Castro não tinha formação universitária nem treino de letrado, a sua obra representa um corte com a tradição, tanto temática como estilística. Digamos, metaforicamente, que ele é o primeiro escritor português que não usa gravata. Daqui vem o seu grande significado sociológico. (Saraiva, 2000: 155-6)
Redescobre-se Ferreira de Castro, também, através do cinema. Seu livro de maior impacto, A selva, que trata dos seus anos de permanência na Amazônia, foi adaptado duas vezes para o cinema. Foi também esse título que catapultou a carreira do escritor para os meios literários em Portugal. Se a obra de Ferreira de Castro não é tão lida quanto referida, no Brasil, já é problema de outra espécie: a dificuldade na formação de leitores no país. De leitores, em sentido geral, e de leitores de literatura, em sentido específico. Mesmo nos cursos de Letras, onde um funcionalismo de estudos da linguagem ocupa, cada vez mais, espaço na distribuição das disciplinas que formam os currículos. No entanto, o que sublinhamos nessas duas trajetórias de recepção a esses nomes é a forma como as historiografias nacionais de cada país lidam diferentemente com esses escritores que trabalharam temáticas vinculadas à mesma região. Nota-se que, tanto no prefácio escrito por Ferreira de Castro à publicação portuguesa de Dalcídio, quanto no texto escrito por António José Saraiva, a experiência de ter vivido na Amazônia é sublinhada.
Como orgulho nacional, a obra da cultura é apropriada para compor uma mitologia, a identificação da comunidade que deve, então, se compor como nacional e, ao máximo possível, homogênea. A absorção do livro de Ferreira de Castro por uma historiografia interessada nos valores do universalismo não apresenta problemas, embora seja curioso notar a forma como o parágrafo de Saraiva começa assumindo que Ferreira de Castro pouco ou nada tem que ver com seus antecessores da prosa em Portugal. A estratégia de consagração que faz de Ferreira de Castro um ícone da literatura portuguesa passa pela legitimidade de sua experiência amazônica narrada, que se configura como um “corte com a tradição”. Assim evidencia o quanto Portugal faz parte da Europa e de seus valores, também no âmbito literário, reforçando sua vocação civilizadora. Retomo, a esse respeito, o trecho já citado de Saraiva: “entra na literatura portuguesa pela primeira vez [...] o grande espaço, a floresta amazónica.” Lembremo-nos que as publicações de Ferreira de Castro ocorrem todas enquanto Portugal ainda detém o controle colonial sobre vastas extensões territoriais da África, além de, em menor escala, na Ásia. Em nada se diminui o valor da obra de Ferreira de Castro. A proposta é de deslocamento do olhar sobre essa literatura, comumente atrelada ao projeto de um panteão nacional, em direção ao escopo dos estudos literários de uma região que atravessa fronteiras nacionais e linguísticas, a saber, a região amazônica, que ocupa espaço considerável em oito países e nela convivem diversas etnias, tradições, formas organizativas e línguas. Esse deslocamento do olhar sobre a obra literária nos parece possível, apesar de acarretar questões a serem enfrentadas em relação às comunidades imaginadas como identidade(s), nacional(is) ou não, representada(s) nas obras estudadas e que compõem a tentativa de entendê-las, a essas obras, como parte da formação de um “campo”. Parece-nos que a diferença de absorção entre Dalcídio Jurandir e Ferreira de Castro pelas historiografias nacionais de seus países reside, precisamente, nos diferentes projetos nacionais de imaginação de comunidades territorialmente identificadas com fronteiras e discursos oficiais. Os projetos de nacionalidade do Brasil e de Portugal, no momento em que Ferreira de Castro e Dalcídio Jurandir estão escrevendo, parecem ser interpretados pelos historiadores locais como servindo a propósitos bem diferentes. Contra o que poderia ser interpretado como a “insularidade” do marajoara, encontra-se a “universalidade” do citado caso português.
Nessa composição de uma identidade triunfante, os historiadores da literatura brasileira ainda não encontraram forma de “aproveitar”, “fazer render” o significado da obra de Dalcídio para a exaltação do “nacional”. Embora aqui e ali esteja citado, não faz parte dos currículos e programas de leitura obrigatórios dos cursos, com exceção para algumas instituições e programas da região Norte do país. A obra de Dalcídio, ainda que não tenha sido essa sua intenção consciente, programática, reflete, em muitas passagens dos dez romances do “Ciclo do Extremo Norte”, os efeitos da “modernização conservadora” com a qual o Brasil, ainda hoje, se vê às voltas e em curso, muito especialmente, na região amazônica, que sofre com a insistência de uma invisibilização ou visibilização equivocada ativamente produzida pela mídia, instituições de ensino e, sobretudo, por práticas e setores do Estado com a justificativa do “desenvolvimento”. A Literatura da Amazônia - não podendo ser de outra maneira enquanto parte do processo que constrói o atual modelo de projeto nacional, e não só do Brasil - também acusa os efeitos desse desconhecimento ativamente produzido sobre a região.
Todas essas considerações é que nos levam ao terreno da experimentação com a territorialidade da literatura. Se as literaturas foram imaginadas como disciplinas acadêmicas de forma a servir com exemplaridade às civilizações nacionais construídas em sua língua e país de origem, se ainda hoje são referenciadas de acordo com o território - dizemos literatura argentina, ou francesa, ou portuguesa ou brasileira -, por que não desatrelar essas literaturas das fronteiras oficiais e experimentar com uma nova cartografia, toda ela inventada a partir dos temas, linguagens, elementos e conflitos propostos pelos discursos presentes, tomando como obras testemunhos e narrativas de sujeitos sociais que, pela sua forma organizativa, não se expressarão dentro do formato estipulado previamente e alhures como um formato literário? Esvaziamos, assim, ao menos momentaneamente, num exercício de imaginação consciente e deliberado, a dominação que paira sobre o exercício criativo e imaginamos como seria a literatura de uma região como a Amazônia que, a despeito de fronteiras oficiais, poderá encontrar dos lados de cá e de lá desses marcos, também inventados, imaginados pelas instituições oficiais, questões semelhantes, afetos semelhantes ou totalmente outros, mas, tantas vezes, incontornavelmente, em descompasso com as histórias, cartografias e temporalidades legitimadas da nação. Como diz Homi Bhabha em recente artigo, “[a] literatura sempre rompeu com os limites nacionais. São muito poucas as grandes obras da literatura que seguem uma perspectiva estritamente patriótica ou nacionalista” (Bhabha, 2012: 2). A maior parte das obras literárias não pretendeu plasmar no corpo da obra os projetos nacionais. Foram os projetos nacionais que se apropriaram delas no intuito de fortalecer o jogo que tornará essas nações, reconhecidamente, detentoras de um patrimônio universal[34]. Neste ponto, investigo: que textos chamar de literatura, apropriando-me de um questionamento da crítica argentina Josefina Ludmer a respeito das literaturas contemporâneas latino-americanas. “Muchas escrituras del presente atraviesan la frontera de la literatura [los parámetros que definen qué es literatura] y quedan afuera y adentro, como en posición diaspórica: afuera pero atrapadas en su interior. Como si estuvieran ‘em éxodo’” (Ludmer, 2007: 1). O que dizem os sujeitos dos territórios em suas formas próprias e não nas formas impostas, de herança difícil, criadas em outros territórios e transplantadas como modelos, fórmulas a seguir, assim como os conceitos de “nação”, “romance”, “moderno” ou mesmo de “Estado”: “[r]etomar a gênese do Estado é retomar a gênese do campo onde a política se desenrola, se simboliza, se dramatiza em suas formas características” (Bourdieu, 2012: 16).
Atualização do tema da pesquisa sobre Dalcídio
Há poucas semanas, conversando com a nora de Dalcídio Jurandir, Carmen, sobre religiosidade na Amazônia, perguntei a ela se no acervo que se encontra com a família não haveria qualquer vestígio de pesquisas que Dalcídio pudesse ter feito acerca do tema. Perguntei isso, especialmente, porque me lembrava de muitas cartas que li na Casa Rui, escritas por Dalcídio para familiares e amigos em que ele perguntava por hábitos, manifestações culturais ou palavras especificamente encontradas na região. Carmen me revelou que sim, que havia visto nos arquivos fotografias que pareciam a ela relacionadas com afrorreligiosidade. Fui até a casa dela e ela, generosamente, mostrou-me fotos e papéis com descrições das fotos. A simples leitura dos romances de Dalcídio já nos revelava essa atenção do autor com a religiosidade[35] e costumes locais. E a afrorreligiosidade e a pajelança aparecem aqui e ali em sua obra, mas não em descrições antropológicas. Para o leitor que não tem a referência religiosa, e essa experiência vivi com diversos alunos e alunas, a Mãe Ciana, de Belém do Grão Pará, e os banhos que a Libânia vai buscar para Dona Inácia, podem passar como costume local, não diretamente associado à religiosidade. De posse de um pouco da referência sobre saberes afrorreligiosos e sobre a pajelança, podemos supor que Mãe Ciana e seus conhecimentos tradicionais é praticante de alguma nação afrorreligiosa ou da pajelança, sendo Belém, capital do Pará, intensamente povoada por essas expressões da diversidade cultural amazônica[36], com registros desde o século XIX.
Apesar da atenção para o tema do diálogo entre Literatura e Antropologia no início desse texto, o tema central do presente trabalho não é exatamente esse. Se o fiz, começar pelo estudo de caso das relações do campo literário com o antropológico é pelas mesmas razões que me levam às constatações da autora Ana Pizarro em Amazonía: el río tiene voces. Tanto no livro citado, quanto em ensaio de 2005 e em entrevista de 2010, a autora demonstra o quanto a etnologia e a antropologia estiveram sempre mais atentas à Amazônia do que os pesquisadores do campo literário. Chama também a atenção para o fato de que a “agenda” de estudos na América do Sul tantas vezes é ditada fora da América do Sul. No campo literário, esse fenômeno já foi analisado em textos de Aijaz Ahmad, precisamente no livro Linhagens do presente (2002). Talvez por essa agenda do campo literário montada externamente à área amazônica, a Amazônia nunca tenha sido continuamente estudada e referida na historiografia literária dos países que ocupa como tópico privilegiado e seus autores sempre vistos como menores ou menos importantes para a historiografia nacional. Daí decorre todo um esforço, de vários críticos, para que Dalcídio integre a historiografia literária brasileira. Reconheço imenso valor na luta desses pesquisadores. Contudo, a experimentação que aqui tem lugar examina outras possibilidades, como uma tentativa de refletir criticamente o território no esforço de uma mudança historiográfica do campo literário. A quimera tem tido sempre seu lugar na Amazônia[37].
Diferente da Química, Física, Matemática ou outros saberes, o campo disciplinar da Literatura foi sempre e continua sendo caracterizado pela territorialidade específica e oficial. Ou seja: nacional, na maior parte dos casos. Literatura italiana, portuguesa, francesa, argentina. Brasileira. A nacionalidade se imiscui, assim, em todas as obras, como primeira característica anunciada das literaturas. Esse traço de nacionalidade conforma o pensamento historiográfico às fronteiras oficiais. Propomos, aqui, uma nova forma de recolher indícios, inscrições, imaginários; uma nova forma de imaginar espaços, sejam geográficos, sejam acadêmicos; como forma de respeito a formas não academicizadas, não canônicas, portanto, de gerar representação literária. Um narrador narrando pelo lado de dentro e com os recursos formais, éticos e estéticos, por ele escolhidos. A nacionalidade, assim como a universalidade, apaga traços distintivos de identidades culturais localizadas. Se existe uma nova agenda política desenhada, na qual a diversidade cultural é reconhecida como patrimônio, relativizando a força das nações, então: existiria mesmo a possibilidade de uma voz ser cosmopolita sem, contudo, ter pretensões a ser uma voz universal?
Ao menos, antes que cheguem “los agrimensores”?
Referências bibliográficas
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[1] “Reino deste mundo”: Curiosamente, a respeito dessa expressão, inicia Said sua argumentação em Representações do intelectual. A expressão é retomada por ele a partir da utilização feita por Julien Benda, em livro publicado em 1927 (traduzido ao português e publicado em São Paulo: Ed. Peixoto Neto, 2007: p. 144); anterior, portanto, ao livro de Alejo Carpentier intitulado com essa expressão e que fornece a epígrafe do presente texto. Essa mesma expressão é, também, utilizada por Alfredo Bosi no título de um capítulo dedicado ao Padre António Vieira. Ele explica o uso da expressão da seguinte forma: “[...] um desejo que é belo e é nobre ainda e sempre: o sonho de um reino de justiça que se realizaria cá na Terra, neste nosso mundo, e não tão-somente no outro.” (Bosi, 2002: 54)
[2] É verdade que, como nos informa Edward Said, “Girardet observa que dois importantes livros de Gide, posteriores a L’immoraliste, a saber, Voyage au Congo [Viagem ao Congo] (1927) e Retour du Tchad [Volta do Chade] (1928), levantam dúvidas sobre o colonialismo francês na África subsaariana, mas, conforme acrescenta ele com argúcia, Gide nunca questiona ‘le príncipe lui-même de la colonisation’” (Said, 1995: p.263)
[3] Oliveira. Apud: Valle e Marín, 2011: 45.
[4] A presente autora vale-se, aqui, da formulação feita por Stuart Hall.
[5] O texto é significativamente localizado e datado: “Vence, 12 de outubro, aniversário da descoberta das Antilhas, de 2001”. (Lourenço, 2005: 9-17.)
[6] Este último texto foi escrito para o livro, organizado por Gopal Balakrishnan, Um mapa da questão nacional.
[7] Grifo meu.
[8] Damas teria sido o mais prejudicado por essa forma imaginativa de se contar as histórias literárias. Por várias razões. Até porque a Guiana Francesa, que integra a região amazônica, ainda figura como colônia francesa, embora a denominação oficial reflita uma condição de “território do ultramar”. Senghor acabou se tornando o primeiro presidente do Senegal, recebendo o cargo transmitido pela França, e postulando, também ele, um apelo à forma nacionalista de contar a história de “seu país”. Césaire foi eleito senador e, também ele, “teria negociado” a construção de um imaginário de continuidade do país natal com o colonizador. Foi enterrado com honrarias oficias talvez só igualáveis àquelas recebidas por Victor Hugo. Contou-se, inclusive, com a presença, em seu enterro, do Presidente da República Francesa.
[9] Universidade Federal do Pará, campus Belém.
[10] Destaca-se, aqui, a obra de referência A invenção da Amazônia, de Neide Gondim, textos de Ana Pizarro, e a biografia de Alexandre Rodrigues Ferreira escrita por Emilio Goeldi. No entanto, também nesse item, e a título de comparação acerca de gêneros textuais - e problematização desses nomes na historiografia literária praticada em nome do elemento “nacional” e da autonomia do campo literário, como se este não estivesse em permanente diálogo com outros universos de saberes que conformam variadas e complexas tipologias de relações sociais -, figuram, também, Los pasos perdidos, de Alejo Carpentier, os poemas da viajante e poeta Elisabeth Bishop e cartas e textos de Mário de Andrade – como O turista aprendiz, já que não só de viajantes estrangeiros vivem os relatos sobre a Amazônia. Por conseguinte, À margem da História, título por si só sugestivo, de Euclides da Cunha.
[11] As obras de Bishop e Mário de Andrade não figuram no segundo conjunto de vozes por eles terem se colocado, desde sempre, como viajantes, portanto, de passagem, assim como Euclides da Cunha. Embora trechos de Macunaíma sejam comentados durante a segunda parte do curso. De qualquer forma, esses autores, assim como aqueles incluídos no segundo segmento da pesquisa, relacionam-se com um “mercado literário” mais amplo que aquele destinado à Literatura dos Viajantes, e a instâncias consagradoras de distinta ordem.
[12] A título de exemplaridade, mencionamos apenas algumas obras que consideramos fundamentais em suas narrativas que repercutem ou se confrontam com versões oficiais de uma dada nacionalidade. A predominância da língua portuguesa deve-se à etapa do trabalho, que segue em processo. Em língua portuguesa: Pe. António Vieira, Inglês de Sousa, Gonçalves Dias, Sousândrade, Dalcídio Jurandir, Leandro Tocantins, Bruno de Menezes, Márcio Souza, Milton Hatoum e o português Ferreira de Castro. Em francês, o poeta Léon-Gontran Damas; em espanhol, o colombiano Gabriel García Marquez, o peruano Mario Vargas Llosa, o equatoriano Francisco Proaño Arandi – e sua ficção andino-amazônica. Além desses, textos de diversos produtores intelectuais que com esses nomes dialogam. Não podemos, aqui, deixar de mencionar os contemporâneos Vicente Salles e Benedito Nunes e o estudo de Raimundo Lopes, fundamental para um reexame da obra de Gonçalves Dias e da forma de entrada classificatória que este autor tem na História da Literatura Brasileira.
[13] "Quebrar intencionalmente uma tradição numa sociedade basicamente tradicional, como é a camponesa é uma espécie de assassinato cultural, [...]”(Fathy, 1980).
[14] Agradeço a expressão a Alexandre Belfort, doutor em Filosofia pela PUC-Rio, que a utilizou em comunicação oral.
[15] Os mapas produzidos por este projeto seriam mapas narrativos, na medida em que são desenhados por sujeitos que ocupam dado território e a partir de suas próprias narrativas, sempre situacionais. São, assim, identidades em constante movimento em relação ao território. São mapas, portanto, também, afetivos, além de tantas outras legitimidades.
[16] Expressão primeiramente utilizada por Barrington Moore Jr.
[17] Expressão utilizada por Alfredo Wagner Berno de Almeida.
[18] Dito de outra forma: “[...]constituir uma cidade como capital, como local onde se concentram todas as formas do capital, é relegar o Estado e o resto do país à desapropriação do capital; constituir uma língua legítima é relegar todas as outras à condição de patoás”. (Bourdieu, 2012: 16).
[19] Palavras que se articulam com este conceito: “progresso” e, mais recentemente, “desenvolvimento”.
[20] Um frontal questionamento ao elemento “nacional” reside na recusa ao Prêmio Nobel, por Jean Paul Sartre, e ao Prêmio Camões, por José Luandinno Vieira. Abordaremos este tema no texto “Objetos de pedra e sujeitos em trânsito: prêmios literários e comunidades de afetos” (no prelo).
[21] Ver introdução escrita por Marta de Senna e Soraia R. Pereira à reedição do romance Belém do Grão Pará e “Vocabulário de Dalcídio Jurandir” publicado por Rosa Assis.
[22] No Brasil, essa forma tida como padrão revela-se nos preconceitos linguísticos que fazem com que os telejornais tentem apagar o que pareça regionalismo. No entanto, o padrão adotado, que mescla registros de partes do sudeste, não é visto, nem ouvido, nem lido como regional.
[23] Entre os estudos de Regina Dalcastagnè, professora da UnB, sobre quem são os representantes e representados da Literatura Brasileira, encontramos: “A literatura contemporânea reflete, nas suas ausências, talvez ainda mais do que naquilo que expressa, algumas das características centrais da sociedade brasileira.” (Dalcastagnè, 2010: 97) A autora oferece a hipótese de “racismo estrutural” para compreender a questão.
[24] Muito embora a palavra Norte esteja presente em alguns pontos no texto de Antonio Candido, foi utilizada significando “Nordeste”. (Antonio Candido, 1975: 299 – citação de Franklin Távora)
[25] O nome de Dalcídio Jurandir recebe uma pequena nota na História concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi. Ao arrolar romances “amazonenses”, num tópico intitulado “Permanência e transformação do regionalismo”, Bosi declara que, entre vários que alcançaram “decoro verbal”, o caso de Dalcídio Jurandir é o mais “complexo e moderno de todos”. Em seguida, Bosi passa ao Nordeste e aos “clássicos do neo-realismo” [sic]. (Bosi, 2006: 426)
[26] Expressão criada por Paulo Nunes em sua tese sobre este autor.
[27] O título é Histórias de vilas da Floresta Negra.
[28] Dirce Cortes Riedel assinala o uso do hino na obra de Dalcídio Jurandir: “O hino pátrio, cantado mecanicamente como obrigação burocrática, comparece no romance Chão de Lobos, em que Dalcídio Jurandir constrói parte da narrativa com efeitos do Hino Nacional sobre os alunos de uma escola carente do Norte do Brasil. A professora prega a grandeza da pátria brasileira e os alunos não podem anotar a relação das riquezas colossais, porque falta [sic] lápis e papel. Mas o inspetor escolar quer saber se decoraram o hino, que se torna supérfluo, pois não há o fundamental clima que ele exala.” (Riedel, 2009: 251-252).
[29] Gunter Karl Pressler, Paulo Nunes, Rosa Assis, Paulo Maués Corrêa, entre outros e, também, a autora que ora se apresenta, Camila do Valle, que reivindicou essa mesma posição para Dalcídio Jurandir em livro didático escrito em 2004, publicado em 2006, republicado em 2007 e 2010. (Valle e Marques: http://www2.ufpa.br/quimdist/Livro_novo/portugues_instrumental/miolo.pdf)
[30] Concluído na PUC-Rio, em março de 2004, sob orientação de Cleonice Berardinelli.
[31] Conforme interpretação de Saraiva: 2000: 156, 168.
[32] Talvez pudéssemos utilizar aqui,a respeito de Dalcídio, “a noção operacional ou noção prática denominada de trajetória tangencial”: “diz respeito a itinerários de produtores intelectuais e científicos, que coexistiam e mantiveram contato rotineiro e mais próximo com autores consagrados, permanecendo sempre gravitando em torno deles, sem criar ‘pensamento de escola’, como definiria Pierre Bourdieu, [...]” (Almeida. In: Domingues e Almeida, 2010: 163. No entanto, essa tangencialidade não é absoluta, é relativa, tendo em vista que a obra do marajoara fecundou, sim, várias outras obras, sejam literárias, sejam ensaísticas, sejam teatrais, sejam musicais (a esse respeito, ver vídeo com música do compositor Vital Lima inspirada num romance do autor: http://www.youtube.com/watch?v=TvW-d9bQUb4), sejam poéticas (Carlos Drummond de Andrade lhe dedicou um poema, no entanto, póstumo; posterior, assim, também à data da escrita deste “Preâmbulo” à edição portuguesa do romance Belém do Grão Pará. A autora que ora se apresenta também publicou poema, traduzido ao espanhol e publicado na Argentina, em homenagem ao autor. Valle, 2005.).
[33] Ainda sob o impacto da geração de 30, Carpeaux escreve: “O chamado e muito discutido ‘romance da cidade’ será provavelmente romance poético, e aí o tamanho pode estender-se aonde vai o sopro do poeta. Tamanho maior também admitir-se-á quando um romancista ainda conseguir encontrar e revelar ambiente novo; é verdade que Floriano Gonçalves não precisava de 800 páginas para confrontar-nos com o Lixo da realidade carioca, mas a Amazônia é bem maior do que o Distrito Federal, e não só por isso abrimos mais uma exceção em favor do notável Marajó de Dalcídio Jurandir. Os outros estão fazendo experimentos, se é que escrevem romances.” (Carpeaux, 1999: 366-7)
[34] “[E]ssa cultura é legítima porque se apresenta como universal, oferecida a todos porque, em nome dessa universalidade, podemos eliminar sem medo aqueles que não estão nela inseridos.” (Bourdieu, 2012: p. 16)
[35] Para citar exemplos de outro romance que não o aqui analisado, buscamos Três casas e um rio: “A escuridão da noite caiu como lama sobre a chuva que crepitava no telhado gotejante, sobre as vozes dispersas dos homens, maracás, bater de pés na madeira do trapiche […].” Ou quando a mãe de Alfredo “subitamente apanhou o maracá de um índio, arrancou de uma cabocla um pano azul, enfaixou a cintura e surgiu no meio do salão, cantando e dançando em passo lento”. (Jurandir, 1979: 103-104)
[36] Ver: Valle et al, 2011.
[37] Como o belo livro A invenção da Amazônia, de Neide Gondim, por sorte, nos relata.