Numéro 8 : comptes rendus

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Valter Hugo Mãe : A epifania do Amor

 

Miguel Real

 

 


O Filho de Mil Homens,

Ed. Alfaguara/Objectiva, 258 pp., 15,30 euros.


 

Na contracapa de O Filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe, é anunciado ser este o primeiro romance de “um novo ciclo na criação literária” do autor.

 

Estamos de acordo e não estamos de acordo.

 

Sim, é um novo ciclo no campo do estilo do autor. Não, não é um novo ciclo tanto no campo temático quanto na composição estrutural do romance.

 

Do ponto de vista do estilo, Valter Hugo Mãe prima neste romance pelo lirismo e pela incursão no maravilhoso.

 

O lirismo, no caso deste romance, desenvolve-se em torno da selecção de um leque de vocábulos amorosos, afectuosos, axiologicamente positivos, compondo uma escala semântica de cortesia e delicadeza na relação entre grupos sociais (pescadores– agricultores ou praia – campo) e entre pessoas no interior de uma antiga aldeia, manifestando-se numa escrita etérea, relativamente diáfana, composta de sentimentos positivos ou cujo resultado se evidencia como positivo (relação Isaura – Antonino; relação Rosinha – Velho Rodrigues e Gemúndio; relação Matilde – Antonino; relação Camilo – Antonino). Do mesmo modo, o lirismo projecta-se na contenção retórica da escrita do autor, que, no entanto, se vai esbatendo a partir da segunda centena de páginas, dando lugar à torrente vocabular própria dos anteriores romances de Valter Hugo Mãe. Neste aspecto, o primeiro capítulo constitui exemplo máximo. Em terceiro lugar, o lirismo reverte-se, em O Filho de Mil Homens, na criação de um centro de gravidade literário fundado no sentimento forte do amor, na sua incessante busca, no entusiasmo emotivo por que é procurado, no afã ardoroso por que todas as personagens se buscam na ânsia de realização do amor, gerando um estado de espírito literário lírico que atravessa a totalidade do romance, dando origem a frases e a imagens de grande beleza estética, como, por exemplo, as que cristalizam a decadência (desvirginação, casamento com Antonino) e ressurreição (encontro na praia com Crisóstomo) de Isaura e o apodrecimento existencial de Maria, sua mãe.

 

Por seu lado, a incursão no maravilhoso complementa harmonicamente a utilização do estilo lírico: o parto da Anã (das enxúndias da Anã nasce a beleza do bebé Camilo); a galinha gigante (que envenena Rosinha e atemoriza Gemúndio, cap. “O funeral do almoço do casamento”), efeito literário que o autor utilizara abundantemente nos seus dois primeiros romances (O Nosso Reino, 2004; O Remorso de Baltazar Serapião, 2006).

 

Relativamente à estrutura de O Filho de Mil Homens, podemos aceitar ser este texto diferente dos restantes romances do autor. Cada um dos cinco capítulos iniciais desenha as características de uma ou duas personagens importantes em andamento cada vez mais forte a partir do sexto capítulo até à epifania final da festa de todos com todos em casa de Crisóstomo. Em outros romances, o primeiro capítulo cruza de imediato um conjunto sólido de personagens.

 

No entanto, se o estilo foi alterado, criando uma nova figuração estética na obra de Valter Hugo Mãe (por isso, a contracapa explicita “uma nova fase”), o campo temático e o modo semântico de abordagem das personagens e dos ambientes sociais e naturais permanecem os mesmos.

 

Com efeito, o Amor tem sido o grande, grande tema romanesco que singulariza os romances de Valter Hugo Mãe, ou seja, a busca do Amor, definido como harmonia ou equilíbrio interno e externo de carácter carnal, sentimental e social, ou, se se quiser, a busca da Felicidade como razão maior da existência (“Ser o que se pode é a felicidade”, p. 94). Adolfo Luxúria Canibal define o Amor como tema central dos romances de Valter Hugo Mãe (“A natureza na prosa de VHM”, in AA. VV., Falas da Terra no Século XXI, IELT/Univ. Nova/Esfera do Caos, 2011, p. 189).

 

Neste sentido, a continuidade na obra do autor torna-se evidente: em nenhum dos restantes romances, mesmo em A Máquina de Fazer Espanhóis (2010), a procura do amor e da felicidade pela totalidade das personagens é tão solidamente manifesta quanto em O Filho de Mil Homens. Em nome do amor, todas as personagens se reconciliam: Crisóstomo encontra o filho (Camilo) e a mulher (Isaura) que desejava, Camilo o pai e a mãe que ambicionava, Matilde reconcilia-se com o filho “maricas”, Antonino com a esposa Isaura, compondo uma singular família a três com Crisóstomo, Matilde realiza-se como mãe com a “cria”, a filha de Rosinha… E todos se juntam numa grande festa em casa de Crisóstomo para a comemoração epifânica do Amor, até o boneco de feira passa a ter nome, “Irmão”, dado pela “cria” (caps. “O Crisóstomo amava por grandeza” e “O sonho do homem aos quarenta anos”).

 

Do mesmo modo, o processo semântico de abordagem do tema permanece idêntico aos anteriores romances do autor, reavivando uma espécie de neo-naturalismo (sem a exploração das taras hereditárias e psicológicas constantes do naturalismo oitocentista e novecentista). Para o narrador da totalidade dos romances de Valter Hugo Mãe, os sentimentos nascem de corpos carnais, com deficiências físicas acentuadas (a Anã, a soberana magreza de Rosinha, a homossexualidade de Antonino, as dores nas costas de Gemúndio…), os homens são caracterizados como “bichos”, com necessidades corporais acentuadas, dominados por uma espécie de “matéria negra” inconsciente, uma tendência natural para o mal, que em O Filho de Mil Homens, mas não nos restantes romances do autor, se sublima num perfeito lirismo, um lirismo amoroso quase puro.

 

Desde 2004, atravessando quatro romances, Valter Hugo Mãe e o seu narrador escreviam procurando o Amor. Setecentas páginas depois, em O Filho de Mil Homens não só o encontraram como o realizaram. Agora sim, pode começar uma nova fase no desenvolvimento da sua obra.