Numéro 10: textes et documents

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A Viola é o Templo

Onde eu adquiri o conhecimento

 

Depoimento de José Alves Sobrinho

 

José Alves Sobrinho foi o nome adotado por José Clementino de Souto na sua vida profissional. Nascido em Pedra Lavrada/Paraíba, em julho de 1921, foi um dos grandes cantadores de sua época, tendo se tornado um pesquisador atento e dedicado da cultura popular. Com Átila Almeida, assinou o importante Dicionário Bio-bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada (1980) e o indispensável Marcos e Vantagens (1982). Publicou também folhetos de cordel e outros livros de sabedoria popular, a exemplo do já conhecido Cantadores, Repentistas e Poetas Populares (2003). Faleceu, na Paraíba, em 21 de setembro de 2011.

O depoimento abaixo foi registrado em 1980 por Edilene Matos, na sede do Núcleo de Cordel da Fundação Cultural do Estado da Bahia, tendo permanecido inédito até o momento. A transcrição e as notas foram realizadas por Andrea Betânia Silva.


Manuel Camilo dos Santos e José Alves Sobrinho (à direita)

 

Vou começar falando do pessoal que se movimenta em torno da cultura popular, alguns eu acredito que mais que bem intencionados. Há determinada animação em João Pessoa que Idelette Fonseca, a francesa que dirigia esse departamento[1], criou, na gestão do reitor Linaldo Cavalcanti, com muito amor, com muito carinho, começou com ela. Hoje está em mãos de Neuma Fechine Borges, uma senhora inteligente, muito boa criatura. Agora tem lá um pouco de folhetos, nem sei, já estão estudando a Literatura de Cordel, levando pessoas para fazer palestra, ela levou Rodolfo[2], essa coisa. À de Campina Grande, como eu trabalho lá, no campus II, fiz doação de um acervo da minha coleção de folhetos, e está lá numa sala numa sessão que o pró-reitor criou e me entregou. Então, estamos adquirindo material. E isto porque lá dentro tem o professor, um professor de matemática, um rapaz que ama muito isso, porque o pai dele gostava muito dessa coisa e tinha uma coleção de oitocentos folhetos, e fez presente a ele, é o Átila[3].  Átila criou muito gosto por isso depois que chegou da França, me convidou pra trabalharmos juntos nesse campo. Ele já é, eu já posso dizer a você, que ele é um dos maiores sábios desse ponto de cultura, literatura de cordel. Átila tem uma coleção de seis mil e trezentos folhetos e estuda desde a vinheta, cercadura, exatamente dos folhetos sortidos, que eram chamados os folhetos de cegos, até a zincografia, até a xilogravura, das suas origens até hoje. É um homem que pega no folheto e começa a dizer data, ele diz em que tipografia foi feito e em que ano, só pela capa.

 

Agora prá falar de cantoria minha memória é boa mesmo. Batista começou conosco, na mesma época de Zeca Dutra, Lourival e Bandeira Lima, João Siqueira de Amorim, o cego Benjamin Mangabeira. Esse era cego e realmente um cantador autêntico. Não era como o Cego Aderaldo não. Não teve nome, mas teve cantoria, enquanto o outro teve nome, mas a cantoria era daquele jeito. Dos cantadores do passado, que foram os meus mestres, e eu ainda tive por trás disso tudo outra felicidade.

 

O meu mestre-escola, de sete a dez anos de idade foi um cantador, poeta popular que ainda é vivo, mora em Juazeiro do Norte, João Quinto Sobrinho, que assina seus folhetos ainda hoje como João de Cristo Rei. Eu tive a felicidade de cobrir as letras de João Quinto Sobrinho. Este homem me incentivou na minha cabeça aos nove anos de idade, fazer versos. Porque ele tinha uma sabatina que chamava argumento, naquele tempo, e exigia dos meninos responder perguntas difíceis. Perguntava um tanto a outro e a palmatória falava no centro. Aquele que não soubesse responder, o que soubesse dava um bolo nele. Então, foi João Quinto Sobrinho, que além de imaginário era santeiro, ele também fazia santos nesta escola lá na propriedade de meu avô. Ele descobriu que eu tinha facilidade de decorar e botava na minha cabeça obrigações como decorar duas ou três estrofes, de poesias, de folhetos, dos clássicos, João Melquíades, Leandro Gomes, pra recitar nos sábados, nos dias de argumento.

 

E daí talvez me veio a influência de cantar, ou então trazia no sangue porque eu sou descendente de Ugulino Nunes da Costa, o célebre cantador Ugulino do Sabugi. Descendo dele pela parte materna. Me fiz no mundo. As minhas letras foram aprendidas com João Quinto Sobrinho, que também sabia poucas. A viola foi o templo onde eu adquiri o conhecimento. A poesia foi a filosofia que eu adotei como vida. O folheto popular foi a minha carta de ABC e a minha gramática. E assim eu já lhe contei um pouco do que sou, nada mais do que isso.

 

Me fiz cantador, botei cantoria em rádio, em 1948 criei o primeiro programa de rádio de cantadores, na Rádio Cariri, em Campina Grande. No dia 13 de maio de 1948 criei um programa chamado Sertão, Viola e Poesia, na Rádio Cariri, de José Jataí, um cearense. Em 49 passei para a rádio Caturitex, que fundava em Campina Grande. Tive outro programa de três ou quatro meses de duração. Bom, comecei a colocar cantadores no rádio, recebia telefonemas anônimos, mesmo em Campina: Isso é cantiga de cego, rapaz, saia daí. A gente nota que você tem uma pronúncia até boa, voz bonita, mas essa cantoria é de cego. Muda essa toada. Eu dizia: Não, se eu mudar a toada deixa de ser aquilo que eu quero mostrar a vocês. Eu quero ficar nessa mesmo. O senhor vai indo e se acostuma, tenha paciência. E assim venci. A cantoria no rádio, hoje, todo mundo gosta. Tem programa de rádio de Norte a Sul do país, quase todos os Estados onde tem rádio. E até na televisão. Não pude desfrutar disso porque quando o povo começou a gostar eu perdi a voz.

 

A voz perdida de José Alves Sobrinho


Eu tive um retrocesso nas cordas vocais, não sei por qual origem. Eu fiquei com a voz feia; não enrouqueci, mas perdi a melodia. Isso já foi mais ou menos em 60, 62.  Passei dez anos sem sentir gosto de comida, nem, e ouvindo mal pelo ouvido esquerdo, de 62 a 72, quando vim saber o resultado dessa doença: um trauma nas cordas vocais que me atingiu uma das cordas que eu tenho perdida. Recuperei o ouvido, recuperei o paladar, sinto até o olfato hoje, mas não pude recuperar a voz. Mas, para não me divorciar daquilo que mais amei, que eu mais queria fazer, que era cantar, eu comecei a pesquisar. Eu me dediquei a escrever o folhetinho e vender na feira, mas não tinha mais mercado lá na minha região e fui acumulando conhecimentos do assunto de folclore. Aprendo com o povo e confrontando com mestres que escreveram sobre cantadores e literatura popular. Com isso eu vou vivendo até agora. Trabalho na universidade, no campus II, em Campina Grande, na Universidade Federal da Paraíba. Sou pesquisador, tenho dezesseis obras publicadas no campo da Literatura de Cordel, entre pelejas, folhetos de oito a dezesseis páginas e romances de vinte e quatro a sessenta e oito páginas. A obra, dezesseis folhetos de tamanhos diversificados. Bom, isso é o que tinha primeiro pra lhe dizer da minha vida.

 

Primeiros passos : congressos e similares

 

Mas, minha cara Edilene Matos, sei que você tem muita curiosidade a respeito da cantoria, e eu vou lhe falar  do movimento de congresso de cantadores, esse movimento que o povo do ambiente fechado foi buscar no povo do ambiente aberto que é o cantador, o artista do povo, é muito simples.

 

Antes do rádio chamar o cantador para o rádio, já tinha congresso de cantadores. O primeiro congresso de cantadores foi realizado no Teatro José de Alencar, pela iniciativa do poeta Rogaciano Leite, ex-cantador, em 1946. Foram titulares do primeiro lugar o cego Aderaldo, que não poderia deixar de ser, já que era cearense, e Otacílio Batista. O segundo lugar coube a Domingo Martins Fonseca e Dimas Batista. O terceiro lugar coube a Benjamin Mangabeira, outro cego cearense cantador, e Vicente Grangeiro.

 

O segundo congresso de cantadores foi realizado na Paraíba, na cidade de Itaperoá, por iniciativa do escritor, padre Manoel Otaviano, professor Pedro Bezerra e o ex-cantador, poeta popular, Antonino de Sousa Coelho, artisticamente conhecido Antonino Guerreiro, isso em setembro de 1948.

 

Mas entre o congresso de 46, em Fortaleza, e o congresso de 48, em Itaperoá, houve um movimento, não congresso, mas um movimento de apresentação dos cantadores no Teatro Santa Isabel, no Recife, por Ariano Suassuna, no qual tomaram parte os três irmãos Batista: Lourival, Otacílio e Dimas. Isso foi em 46, já depois do congresso de Fortaleza. Ariano teve a ideia de mostrar ao povo pernambucano o cantador no teatro. E foi feliz, agradou. Bem, esse não foi congresso, não houve competição. Foi a apresentação de três irmãos cantadores com mais a participação de Agostinho Lopes e Manoel Nogueira, mas não houve caráter de competição.

 

Depois veio o congresso de 49 realizado no Recife pelo Rogaciano Leite, o mesmo que havia organizado o de Fortaleza, em 46. Realizou o congresso de cantadores no Teatro Santa Isabel, no Recife, em 49. Não posso precisar o mês agora, porque passou. Desses cantadores tomaram parte os irmãos Batista, Lourival, Otacílio e Dimas, cego Aderaldo, Domingos Fonseca, Agostinho Lopes dos Santos, Manoel Nogueira Lopes e João de Natália, Francisco de Sousa conhecido vulgarmente como João de Natália. Cantador e cabo da polícia de Pernambuco. Depois desse congresso houve uma divergência de Rogaciano como os irmãos Batista por questões de pagamento e separaram-se os cantadores.

 

Cantadores no eixo Rio-São Paulo


Rogaciano seguiu para São Paulo com o cego Aderaldo e Domingos Fonseca e os Batista seguiram para o Rio com Edmundo Celso, um jornalista, para fazer apresentações no Rio. Quem seguiu com Edmundo foram os irmãos Batista e o velho Severino Lourenço da Silva Pinto, Pinto do Monteiro. Lá no Rio, sofreram qualquer coisa, mas terminaram vencendo.

 

Rogaciano saiu-se brilhantemente em São Paulo com o Cego Aderaldo e Domingos Fonseca que cantaram pra Ademar de Barros e Ademar de Barros deu de presente um cinema ambulante pro cego Aderaldo e ele também já havia possuído esse cinema e viajava o interior do Ceará todinho, cantava, tinha uma trupe de artistas que tocavam pro povo dançar e também tinha o cinema, do cinema mudo. Mas Ademar, sabendo dessa história, deu ao Cego Aderaldo um equipamento de cinema novo. E ganharam bem dinheiro. Então, Ademar de Barros, naquela época governador do Estado de São Paulo, soube que havia esses outros cantadores no Rio e tomou interesse de ouvi-los também. Aí manda chamar os irmãos Batista. Aí é que uma jornalista os leva pra cantar pra Ademar de Barros. E lá eles cantam com Domingos Fonseca mais Roberto Sousa, desviado da coisa. Eles desafiaram Roberto Sousa que era um rapaz de muito talento, mas, modesto, não aceitou o desafio. Enfim, isso em 49. Aí vem esse movimento de congresso de cantadores.

 

Depois de passar essa época, há um congresso de cantadores numa cidade do interior de Pernambuco chamada Gravatá. Chamou-se o congresso dos cantadores “Rabo de cabra”. Tinha mais esse título. Teve o primeiro lugar Otacílio Batista. O outro companheiro que eu não sei qual foi. Depois desse congresso de Gravatá, há um Congresso de Cantadores em João Pessoa. Uma ligeira apresentação sem caráter competitivo. Isso já em 51, o outro já surgiu em 52. Aí para o movimento do Congresso de Cantadores.

 

Quando em 1959, em novembro, somos convidados por Calazans Fernandes, um jornalista do Rio Grande do Norte, naquela época secretário do Jornal do Brasil, do Rio, nos convida a fazer, sobre os auspícios do Jornal do Brasil um congresso de cantadores no Rio de Janeiro e fomos para lá dezenove cantadores. Dessa vez, eu tomei parte também nesse congresso. Cantávamos no Teatro de Arena[4] e o encerramento foi no Teatro da ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Teve a vitória de primeiro lugar Dimas e Otacílio Batista. Segundo lugar Zé Gonçalves e Cícero Bernardes. Terceiro lugar, Apelônio Belo e João Patriota e o mais não teve lugar.

 

Ficou todo mundo quebrando o pau lá pelo Rio, navegando em tudo que encontrava, quase tudo naufragado, sem dinheiro, e eu levei onze cantadores que estavam desamparados no Rio ao meu lado e fui bater em Caxias, falar com o deputado Tenório Cavalcanti[5] e ele nos acolheu. Lá passamos o resto do mês, doze cantadores por conta do deputado Tenório Cavalcanti, no Hotel Flor de Caxias e ele nos deu de presente a estadia. Aí cantamos em todas as cidades da Baixada Fluminense. Levávamos carta de recomendação do deputado Tenório para os prefeitos daquelas cidades e dávamos a exibição por conta das prefeituras. Eu e mais onze cantadores. Assim nos saímos bem porque a razão da nossa demora no Rio, você deve estar lembrada, que em 59 houve um levante, e a aviação brasileira entrou em greve. Depois do levante de Aragarças[6] passou quinze dias ou mais sem haver a navegação aérea funcionar. E nós tínhamos passagem ida e volta paga pelo setor de turismo do Distrito Federal, estávamos de passagem no bolso, mas sem ter em que voltar, então ficamos esses dias no Rio esperando que reabrisse o aeroporto e normalizasse o trânsito de avião. Quando serenou isso, todo mundo voltou. Eu e mais três cantadores não quisemos mais a passagem e voltamos por conta do deputado Tenório Cavalcanti, no avião super a jato da Panair  daquele tempo, até Recife e daí pra lá voltamos ao Ceará.

 

A voz perdida e novos congressos

 

Seguindo tudo isso, em 59, houve um congresso de cantadores, em João Pessoa. Eu aí já não tomava mais parte do congresso porque já estava muito doente, já estava sem voz, mas assisti o congresso de João Pessoa. Foi muito bom. Já em 60, no fim de 60, aí para a história dos congressos de cantadores. Mas os cantadores, durante todo esse tempo continuam cantando em rádio, que era uma divulgação.

 

Então, em 1974 há um grande movimento para se realizar congresso de cantadores nacional, em Campina Grande, na Paraíba, com a ajuda dos poderes públicos, municipais e estaduais, respectivamente. Os primeiros Congressos Nacionais de Cantadores em Campina Grande aconteceram em 75, 76, 77, 78 e 79. E agora em 80 ainda não houve, mas estão falando que vai haver em novembro, não sei. Os congressos normalmente, em Campinas, são na semana folclórica, mas de um pra cá mudou: em vez de ser em agosto passou pra setembro. E agora em 80 ainda não houve, estão dizendo que vai ser em novembro, não sei por que.

 

Nós criamos uma associação de cantadores, poetas populares, em Campina e esse amparo nos tem dado o direito de realizar esses congressos. Pedimos alguma ajuda dos poderes públicos por essa associação. Mas a primeira associação de cantadores foi fundada em 1948, no Ceará, por Domingos Martins Fonseca, João Siqueira de Amorim, Benjamim Mangabeira, José Mota Pinheiro, Ercílio Pinheiro e este menor criado, José Alves Sobrinho. Fundamos a primeira Associação de Cantadores do Brasil, em Fortaleza. A segunda foi fundada em João Pessoa por Manuel de Almeida Filho, Sebastião José do Nascimento, Francisco Evaristo, Valdomiro Paes e José Alves Sobrinho. Durou pouco tempo. A terceira foi criada por... não me lembro bem quem foi que movimentou isso, mas criou no Ceará, no Carirí, no Juazeiro, entre Juazeiro e Crato, a Associação dos Cantadores do Vale do Cariri. Pedro Bandeira entrou nessa associação e tomou conta de uma associação já dele. Deu a nós uma associação de cantadores já em 60 e poucos. Ele entrou depois. Bom, essa é a história das associações.

 

Em São Paulo eu ajudei a fundar a ARPOFOBE. Essa associação funciona no antigo prédio da Martinelli[7]. Pertencia a Venâncio Columba esse salão que ele nos deu de presente e lá funcionava a nossa associação ARPOFORBE. Mas como Martinelli você sabe que foi condenado, né, eu não sei onde está funcionando agora a sede, mas ela continua de pé.

 

Os locais que mais abrigaram os festivais foram Paraíba do Norte, Campina Grande. O de Campina Grande tem sido um dos maiores congressos de cantadores. O primeiro foi realizado por Apolônio Cardoso, um ex-cantador, hoje advogado residente em Mossoró, foi que organizou o primeiro congresso. O segundo já fomos nós da associação que organizamos em 76. Zé Gonçalves era o presidente. Organizamos o terceiro e o quarto já foi na gestão de Ivanildo. O quarto e o quinto. E o resultado é que esse ano ele ainda não fez porque o quinto deu um prejuízo enorme que ele não teve cabeça.

 

Fora da Paraíba, o Piauí já tem feito, já vai fazendo três congressos em Teresina. O doutor Pedro Bezerra, folclorista, já vai realizando com muito brilhantismo, no Piauí, congressos de cantadores. Mas, Edilene, somente Campina Grande é que tem um calendário fixo para congresso, embora esse ano não tenha sido no mesmo mês. João Pessoa já vai fazendo quatro congressos também, mas não tem calendário fixo. Pode ser em maio, pode ser em agosto. Aqui, na Bahia, tem Feira de Santana. Lá, já houve congressos, eu não tomei parte não. Se não me engano, já houve dois.

 

Eu falo, Edilene, com mais propriedade das competições dos lugares que conheço, dos congressos e festivais que participei. Eu não posso lhe dizer os de fora porque não tomei parte. Apenas um em que houve em São José do Egito, que eu tomei parte na comissão julgadora, dois que houve em João Pessoa, que eu tomei parte na comissão julgadora e três que houve em Olinda, mas o de Olinda é um congresso feito no meio da rua. É gente demais porque também é de graça, ali na Praça da Sé, cabe muita gente e é pago pelo Senhor Bacaro, um italiano que é presidente da Fundação Casa da Criança. Esse aí se dá lucro eu não sei porque ele é quem paga. Bom, dizem que o de Pedro Bezerra, no Piauí, foi uma maravilha de congresso, onde ninguém sai dizendo nada da honestidade do homem, brilhante. E o de Campina Grande, se tem tido honestidade, eu não posso dizer nada porque acho que os meninos têm agido com muita lisura, com muita lhaneza no congresso. Se tem havido qualquer coisa em classificação, eu não sei. Eu tomei parte em uma comissão julgadora em que não houve nada demais: foi uma comissão justa. Mas, demais eles conversam que houve, mas eu estou distante da coisa, não tenho condição de afirmar.

 

A Bahia no cenário da cantoria

 

Uma coisa eu quero falar aqui nesse depoimento para você que é da Bahia. Há uma coisa interessante: a Bahia ficou um pouco distante de lá da nossa região. Os jornais baianos quase que não avançam à Paraíba. Nós temos vagas notícias do movimento que se assume na Bahia, a não ser um grande movimento que revolucionou a literatura popular no Brasil, de Rodolfo Cavalcante, em 1955. Esse não foi só a Paraíba que teve  notícia: todo o Brasil soube. E os demais as notícias nos chegam lá tardiamente.

 

Sobre os cantadores da Bahia, eu, como pesquisador, poderia lhe falar de duas formas: a primeira eu tenho que lhe dizer a verdade. A segunda, como pesquisador, eu tenho que ser imparcial, porque não sou um pacificador. Eu sou um pesquisador e exponho o meu material, aos seus olhos e a de quem nos tenha prazer em julgar. A Bahia começou muito tarde com cantoria. Quando a Bahia veio começar a aparecer com cantoria, já havia três gerações de poetas na Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará. A Paraíba (Bahia) é um menino ainda acalentando a inspiração de jovens no ramo viola, no ramo cantar repente ao som de viola. Mas, nesse pessoal novo da Bahia, eu já estou vendo valor e daqui mais dois ou três anos serão capazes de rivalizar com os cantadores experimentados da nossa região.

 

Esse começo tardio da cantoria na Bahia, acho que isso foi mesmo uma condição por falta de hábito, de falta de costume de se ouvir o cantador pela tradição, porque na Bahia não se tem notícia de cantador mesmo no século passado; em 1850, já havia cantadores na Paraíba, cantadores profissionais, como Romano do Teixeira, Ugulino do Sabugi, Silvino Pirauá Lima, Germano Alves de Araújo Leitão, Germano da Lagoa, Sirino da Guajurema, o célebre, lendário Inácio da Catingueira, Zé Paulino Torto, Manuel Galdino Bandeira, José Dutra do Zumbi. Isso são cantadores do século passado, que já iam morrendo em 1910, 1920, quando eu começava a nascer. E a Bahia começou ontem. O cantador mais velho que tem na Bahia talvez não tenha vinte anos ainda de existência, nesse ramo aqui. Portanto, eu acho que não seja por uma questão socioeconômica, uma questão de ninguém. É uma questão de hábito, que lá começou primeiro. Meu pai já nasceu ouvindo cantador, acostumou o ouvido. Ficou velho, aí gostava chamava pra casa, me ensinou isso e eu aprendi mais cedo, deve ser por isso. A Bahia veio revolucionar de 54 pra cá, 55, com o movimento de Rodolfo Coelho Cavalcante, que não foi só de literatura de cordel. Ele colocou cantadores, aí a Bahia começou a ver o cantador, o espetáculo da vista.

 

A tradição da glosa

 

Eu me empolgo quando dou um depoimento desse à uma jovem pesquisadora como você, minha cara Edilene Matos.

 

Agora, eu preciso falar um pouco da história, do começo dessa atividade de pelejar com o outro. Tudo bem. O cantador do Brasil surgiu da tradição da glosa. Antes do cantador havia o hábito, no Nordeste, especialmente de Caraíbas, Serra do Teixeira, Patos, Piancó, havia serões de glosa. Juntavam-se quatro ou cinco glosadores e passava um domingo ou uma noite de São João, de São Pedro, glosando nas casas e corria até a propina. Observe os glosadores como Nicandro Nunes da Costa, Bernardo Nogueira, Germano de Araújo Leitão, Germano de Alagoas, Firmino da Jurema, José Martins, Silvino Pirauá Lima, eram glosadores profissionais, viviam da glosa.

 

Bom, veio o reisado. O reisado, a orquestra era viola e rabeca. Havia as loas dos Mateus, dos mascarados, e cantavam aquelas loas. E os cantadores nasceram dali. O próprio Ugulino do Sabugi foi de orquestra de reisado. Ele tinha viola e toca em orquestra de reisado. Manuel Caetano, negro velho, escravo, foi da orquestra de reisado. João Benedito, negro velho, não chegou a ser escravo, já nasceu quase livre. Bom, os cantadores sugiram daí. Glosavam, cantavam em quadras, depois Silvino Pirauá Lima criou a sextilha, isso início de setenta pra cá, século passado.

 

Antes de setenta se cantava em quadra. Não há notícias de sextilha, nem redondilha estilo português, nem nada cantada por cantador. A quadra, a décima, o mourão de cinco pés e o gabinete de seis pés que é o martelo de seis pés. De Pirauá pra cá, surgiu a sextilha. Já na nossa década, de trinta pra cá surgiu os oito pés a quadrão, a oitava de quadrão, que deve ter a introdução da oitava no conto popular a Vicente Grangeiro, que ainda está vivo com oitenta e tantos anos, mora em Fortaleza. Beira-mar vem de Sousinha. Sousinha foi um cantador que existiu no Crato e beira-mar foi começado a cantar em 1934 por Sousinha e Zé Pretinho, melhorado por Siqueira de Amorim e o velho Manuel Galdino Bandeira, cantador paraibano, avô de Pedro Bandeira, esse gênero de beira-mar. Generalizou-se, mergulhando trouxe esse estilo lá do Ceará pra Paraíba e generalizou-se. A gemedeira surgiu em Alagoas, de Manuel Menem. Que aquele ai, ai, ui, ui se chamava relaxo. Manuel Menem cantava romances, penosos e cantava aquelas histórias penosas dizendo ai, ai, ui, ui, aí surge a gemedeira e passou do romance decorado para o improviso com o nome de gemedeira. A toada alagoana é de Manuel Xeléu, um pagodeiro que hoje é cantador. Aí passaram do caracaxá, do pagode para a viola do cantador e ele levou vários gêneros, como martelo alagoano, gabinete repetidos, que eram pagodes e passaram pra cantoria popular. E assim fui formando meu conhecimento, professora, é o que eu posso lhe afirmar. Não posso lhe dizer categoricamente se o primeiro cantador foi Ugulino do Teixeira, foi Manuel do O. Bernardo. Sei que é dos primeiros que nós temos notícias. Mas pode ter havido outros de que nós não tenhamos notícia.

 

A força da memória

 

A força da memória do cantador é grande, talvez no passado fosse maior, ou de outra forma. Por exemplo, uma cantoria, hoje, que nós estamos em pleno século XX, em mil novecentos e oitenta, e se vai ouvir uma cantoria, por mais  inteligência que se tenha, você grava uma, duas ou três estrofes, mas cantoria, quando muito dura, dura até duas, três da manhã, com muita extravagância. No meu tempo ainda amanhecia o dia cantando romance. Isso, sim. Um cantador canta seis horas, oito, mas uma cantoria durar oito dias e em oito dias decorar-se tudo que se cantou em oito dias, isso pode fazer parte de uma fantasia. Não havia recurso de gravador, não havia taquigrafia. Isso é uma coisa que não entra na minha cabeça.

 

O que eu posso lhe afirmar é que são três pelejas de Romano com Inácio. Uma foi escrita por Silvino Pirauá Lima. A outra foi por Ugulino do Sabugi, que foi a primeira. E a terceira por Leandro Gomes de Barros, atribuindo a Romano e Inácio. Que peleja de cantadores é sempre uma ficção. É uma coisa que um terceiro faz, um poeta popular. Rodolfo nunca cantou, mas pode inventar uma peleja entre mim e Edilene Matos e escrever lá. Isso desde o começo foi isso.

 

Agora, entre peleja, debate, discussão, encontro, isso é controvertido. Nós entendemos assim: peleja é quando estão em jogo dois nomes, duas famas. Discussão é quando está em jogo um ponto de vista. Discussão do ateu com o católico, é uma discussão, é uma tese que se discute. Debate pode ser um sinônimo da própria peleja, mas pode ser o ponto de vista do cantador, o outro é debate de um crente com um protestante, isso, aquilo, aquilo outro. Porque a primeira peleja escrita no Brasil tinha o nome de Martelo de Romano com Inácio. Romano de Mãe d’água e Inácio da Catingueira e não tem nem um martelo, quer dizer que essa palavra martelo significava luta entre dois cantadores. Isso de martelo vem de bater no outro. É isso que eu posso lhe afirmar, pela lógica. Téo Brandão está comigo nisso. Câmara Cascudo me apoia nesse ponto de vista, mas eu não sei também se é ou não é. É lógica que querem dizer isso.

 

Cantoria e música popular : articulações

 

Como pesquisador, por exemplo, eu não gosto de usar a palavra apropriação e sei que muitos usam por aí. E quando eu passo a falar desse assunto é porque sempre me indagam se eu acho se há uma apropriação da oralidade do cantador, na chamada música popular, dos mais diversos, não só Luiz Gonzaga como outros que cantam música nordestina. Edilene Matos, eu penso desse jeito: não é uma invasão, não é uma apropriação nada no baião, de Luiz Gonzaga, no rojão de Jackson do Pandeiro, nas músicas de Tonico e Tinoco, de Alvarenga e Ranchão, de Renacio e Corumba, que tudo são parentes do cantador, mas aquela música é do povo como aquela música do cantador também é do povo. Ninguém sabe quem cantou a primeira toada de cantador, nem a segunda, nem a terceira. São músicas do povo, músicas folclóricas, então, Luiz Gonzaga tinha o direito de fazer aquilo porque a música é nossa e ele é povo. Não há nada demais, agora, o que acontece é que ele aproveitou motivos que o cantador já fazia e extrapolou. Fez um baião, botou mais alguma coisa em música e diminuiu em poesia, em versos, em estrofes. Mas eu acho que aquilo...

 

Você sabe que a música popular foi pendurada no folclore, mas folclore não nasceu com música popular; nasceu como manifestação da palavra e não da música. Depois do estudo folclórico e eu sou obrigado a voltar um pouco naquilo que você não quer ouvir, que são as raízes. A música popular foi pendurada num folclore como um estudo à parte. Depois, quando o folclore já tinha sido elaborado, por John Thomas, pelos irmãos Grimm, da Alemanha, e muitos outros, não tinha música. Estudava-se a palavra do homem na superstição, na culinária, no terçado, no bordado, no labirinto, no canto popular, nos paiadores. Aí não se falava em música, estudava-se a palavra do homem. Mas depois acharam por bem que a música acompanhava aquilo e se estudava aquela música. Luiz Gonzaga tinha o direito de fazer um baião, pendurado na viola, com a sanfona. Não foi o primeiro Luiz Gonzaga; foi o primeiro a divulgar o baião, por intermédio de Humberto Teixeira, que foi o primeiro criador. Ele foi o intérprete, Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira foi o criador, introduziu o baião e Luiz Gonzaga interpretou.

 

A palavra  apropriação é muito dura. Eu não me atrevo a dizer, não é professora? Sei que há uma polêmica: apropriou não apropriou? Usou a fonte e não deu conhecimento da fonte. Os tempos são outros, não podemos esquecer isso!

 

Os tempos são outros : gravadoras

 

Estamos no tempo das gravadoras e elas empresam simplesmente até certo ponto. Quanto ao problema do cantador aprender novos termos pra dizer, eu, pra condenar, seria contra a evolução. Todo mundo tem direito de crescer. Nem admitir que ele fique de carro de boi toda vida, não ande no automóvel porque o cantador também é uma criatura humana. Nasceu no carro de boi e vai direito de voar no avião, andar no automóvel. Também tem direito de aprender palavras novas, assuntos novos. Se ele leva pra cidade os costumes do sertão, ele pode trazer da cidade, os costumes que aprendeu, para o sertão, para o sertão aprender também. Eu acho que aí o cantador pode se descaracterizar um pouco se não tiver muita experiência. Em vez de cantar em sua linguagem natural o que aprendeu na cidade, ele trazer as gírias de lá pra confundir com os nossos falares de caboclo, mestiço, sertanejo, aí ele está pecando porque está se descaracterizando. Mas se ele estiver levando a nossa cultura para o rádio, ela nua, a nossa cultura, na linguagem do cantador, que é a linguagem do povo, que quando acaba de fazer uma estrofe o povo entendeu toda, aí ele não está pecando; está evoluindo. E a função das gravadoras nisso aí é aproveitar a influência que está do cantador nas metrópoles, elas gravarem pra vender disco. Está beneficiando aos cantadores, evoluindo a classe e ganhando dinheiro, que ninguém bota prego sem estopa.

 

E os cantadores não podem ficar dentro de uma redoma no sertão. Eles devem ir pra todo canto como todo mundo vai agora, cantar o que ele tem de si, sem descaracterização. Eu acho muito ridículo, não condeno, o cantador se formar, agora é doutor  e vai cantar com a viola e o anel. Não, ele devia esconder o anel na hora que for cantar, mostrar só a viola. Bom, isso é um ponto de vista meu. Com isso eu estou dizendo a você que ele levando outras palavras para o campo da poesia popular, ele não é um homem popular, ele é um clássico. Deixa de ser o cantador, mas isso não é uma descaracterização, propriamente; é uma evolução do homem, no espaço e no tempo.

 

Os tempos são outros, minha jovem pesquisadora. Até os instrumentos são outros. Os instrumentos usados na cantoria, na sua origem, eram a viola, o pandeiro e a rabeca. E o ganzá. O ganzá é pelos emboladores, mas houve uma cantadora, que cantava com o ganzá. Eu ainda alcancei, cantei com ela. Era de Patos, das Espinharas, na Paraíba, cantava repente, tudo, mas com o ganzá. Era a cega Altídia. Isso na década de trinta, quarenta. Ela morreu antes de cinquenta. Cantava com o ganzá cheio de espelhos. Não sei pra que um cego quer espelho, mas ela tinha todo enfeitado de fitas, essas coisas. O cego Aderaldo usou os dois instrumentos: rabeca e viola. Bom, o cego Zuquinha usou rabeca. O cego Pedro de Oliveira usa rabeca. Benjamin Mangabeira, também cego, mas usa viola. E assim nós encontramos esses três instrumentos como distintivos da origem, do cantado.

 

Ainda hoje se encontra algum cantador com esse remanescente ou todos. Ainda encontra alguns. Com a rabeca ainda está vivo o cego Pedro de Oliveira, mora em Juazeiro, do  Padre Cícero. Ele toca os dois, mas prefere a rabeca. Ele teve até em São Paulo fazendo demonstração. Ele canta romances, de 48 páginas, 60 páginas, sua rabequinha acompanhando. Tocando na mesma toada, e cantando seu romance, canta Genebra, algumas de Genoveva, alguns do Boi Misterioso, algumas do Príncipe e a fada. Coisas bonitas de Leandro Gomes ele ainda tem com sua rabequinha e canta repente com ela. As violas sertanejas, que são as nossas violas paraibanas, pernambucanas, rio grandense do norte, cearense, são de origem do Pará. Ela entrou na nossa terra no primeiro quartel do século passado, no tempo em que Ugulino entrou no ramo da cantoria. Eram violas feitas no sertão. Estas estão desaparecendo. Eu tenho uma coleção delas, mas estão desaparecendo. Hoje é a viola dinâmica, aquela bonita feita pela Deverge, a Rozini, a Giannini, e outras fábricas de violas industrializadas, de instrumentos de corda. Outras violas os cantadores compram o violão e fazem uma ligeira adaptação, fazem do violão uma viola e cantam com ele. A viola sertaneja tá desaparecendo. Mas é por uma questão de evolução: o cantador quer andar mais bonito e com uma viola mais bonita. E quanto a cantar com rabeca, eu só me lembro atualmente do cego Zuquinha e de Pedro de Oliveira, mas alcancei muitos tocando viola ou ganzá, mas o ganzá é mais tipicamente do embolador de coco. Como o caracaxá é o do pagodeiro, que é outro tipo de coco usado em Alagoas. O coco de tropé, de roda, coco de São João, coco do brejo, coco de usina, que é a mesma coisa, muda só por região, de nome, esse é o zabumbo e uma caixinha, o povo cantando e dançando. Não há o ganzá, o zabumba (bumbo, não é?) e havia uma caixa batendo. Canta, o povo dança, enquanto o pagode é o caracaxá e uma caixinha do tamanho de ..., mas isso só é usado em Alagoas.

 

Zé Limeira

 

Edilene Matos, minha cara, você quer que eu conclua esse depoimento dizendo algumas verdades que estão, às vezes, escondidas ou mal entendidas nesse grande universo da poesia popular. E eu escolhi para falar das contradições em torno da vida do cantador  Zé Limeira. Existiu mesmo Zé Limeira? Sim, eu respondo com toda certeza. Zé Limeira existiu, foi cantador, eu cantei com ele muito. Morreu em 55, com 56 anos de idade, nasceu no município de Campina Grande, num lugar chamado Cumbe, mudou-se para o Teixeira, morou em Monteiro, foi filho de criação do pai de Severino Nunes que levou de Campina Grande com nove anos de idade e acabou de criar na cidade do Monteiro, Paraíba e de lá ele se fez cantador, meteu-se no mundo.

 

Era um cantador, cantava muito bonito, tinha voz linda, preto, simpático, humilde, católico, homem sério, nunca disse uma obscenidade nem conversando. Era desses que se zangava até se você dissesse: Limeira, você tá bonito hoje! Vai namorar? Ele ficava com raiva. Versos daquela natureza ele nunca os fez, agora ele cantava errado. Ele fazia comparações, comparações assim extravagantes. Eu vou recitar um verso que vi ele fazer. Ele disse:

 

Eu me chamo Zé Limeira, cantador velho e boême

Só gosto de duas coisas, que é cachaça e mulher fême

Ainda no ano passado fui pai das aldigême.

 

Isso ele fazia, mas com obscenidade nunca fez um. O livro Zé Limeira, poeta do absurdo quem escreveu foi Orlando Tejo, o grande ficcionista, um grande escritor, rapaz inteligente, rapaz culto, poeta sublime, meu conhecido, meu amigo. Ele menino, chegava nas mãos com um calhamaço de versos pra eu metrificar, pra eu ensinar ele a metrificar. Eu trabalhava na redação da Rádio Caturipé, em 49, chegava aquele menino com um bocado de estrofes pra eu metrificar, ensinar a rimar, fazer sonetos, essas coisas. Um rapaz brilhante, capaz de escrever porque tem talento. Aproveitou um bocado de coisa que Otacílio Batista inventou, atribuindo a vários cantadores, que Otacílio é muito brincalhão, aí sacudiu em cima de Zé Limeira devido a algumas extravagâncias que Zé Limeira também já diz.

 

Como ficção eu aceito o trabalho de Orlando Tejo. E gosto e acho bom. E isso lhe digo sem nenhum temor. Gosto do trabalho de Orlando Tejo e aceito como ficção, mas como a figura do Zé Limeira que eu conheci, eu não aceito nem meio por cento, quanto mais trinta. Vou contar mais uma coisa: consta numa matéria publicada no Jornal do Brasil que o próprio Orlando Tejo teria tomado conhecimento de uma carta do Otacílio que nada daquilo era real e que obrigou, me parece, o Orlando Tejo a procurar, não sei se Ariano Suassuna, e depois o Otacílio se retrata dizendo que era real tudo aquilo, que não tinha tido interferência nenhuma.

 

Não houve isso. O que houve foi que Otacílio disse isso, que talvez eu esteja dizendo hoje, e Orlando Tejo foi lá, pelo amor de Deus, pedir a Lourival, irmão de Otacílio, que não fizesse isso porque ele tava só fazendo um bem divulgando por caminhos diferentes, mas era uma divulgação. E convenceu Lourival a dizer que conheceu Zé Limeira e que Zé Limeira cantava errado. E Lourival confirmando, os irmãos, como irmãos mais jovens, eles têm que confirmar também. Aí Otacílio também gravou uma resposta lá num disco e houve isso no Recife, mas não convenceu a ninguém. A defesa de Orlando não convenceu. Ariano não convenceu; Gilberto Freire não convenceu, que a prova foi muito fraca.

 

Essas distorsões, minha cara, sempre acontecem em todos os ambientes.

 

Dizem também outras coisas, tais como que ainda hoje em cada peleja, em cada vitória a viola vem mais enfeitada com uma fita. E isso não ocorre mais. Já houve essa tradição, mas eu não alcancei mais. Quando eu comecei a cantar, em 1934, já não havia mais isso. Mas, me contavam, aqueles cantadores que já vinham daquele tempo, como João Benedito, Manuel Fernandes e outros, contavam que havia isso. As moças enfeitavam o cantador cantando e de quem se agradavam mais, ou julgavam que cantava melhor, botava um laço de fita, essas coisas. E havia a questão do dinheiro porque o cantador levava tudo ali na presença do povo, mas partia lá fora. Sempre em irmandade há isso. E isso eles me contavam, mas eu não assisti mais essa coisa.

 

Na conclusão um alerta : pesquisadores de binóculos

 

Mudando de assunto, Edilene, eu quero mostrar uma coisa para você, que é muito jovem, e já começa a. fazer uma boa pesquisa, na Fundação Cultural e na Universidade. Na atual situação, da nossa preocupação da universidade, de homens eruditos, hoje com uma propensão a um alargamento muito grande, hoje se encontra uma série de indivíduos folcloristas, que tem dez livros de cordel embaixo do braço e me diz que é folclorista. Isso é bom porque está divulgando. Tudo que vem em nosso favor, como disse Jesus a Pedro: fizeram mal porque tudo aquilo que não é contra nós, é por nós. De certo modo, isso divulga, é uma promoção, mas pra você identificar hoje uma poesia feita por um erudito que quer se fazer popular, você quando lê a primeira estrofe, você vê que foi um erudito que fez porque tanto subiu muito como baixou muito. Ele tanto diz coisa lá em cima, que nós não alcançamos, como diz coisa lá embaixo que a gente nunca se baixou pra apanhar. São descaracterizados, mas eu não tenho isso como uma ofensa. Eu recebo isso com alegria porque é mais uma pessoa trabalhando em nosso benefício, divulgando a nossa cultura.

 

Me preocupa ver a indústria editorial publicando muita coisa a nível puramente consumista. Nesse ângulo, é um perigo. É um perigo porque vai informar à posteridade coisas sem fundamento. Vai levar coisas sem fundamento aos ouvidos de nossos netos. Isso é um perigo. É preciso que se tire o joio do trigo. Quando a elaboração folclórica nasceu no Brasil, nasceu com muito boa intenção: Silvio Romero, Melo Morais, Joaquim Ribeiro ou João, até Leonardo Mota, Coutinho Filho, Pereira da Costa, Rodrigues Carvalho, Ariano Suassuna, Liêdo Maranhão. Esses homens são bem-intencionados: se eles informam uma coisa, que apenas se aproxima, é porque eles não tiveram uma vivência com o cantador, mas aí há elementos escrevendo, professora, sobre uma coisa que não conhecem. Estão jogando foguete como está respondendo apostilas em ginásio, tá certo? Quem descobriu o Brasil? Foi Pedro Álvares Cabral, foi Otávio Mangabeira ou foi Zé Alves Sobrinho? O cabra danado Pedro Álvares Cabral e por um acaso acertou, aí foi premiado. Isso é um perigo, para a posteridade. Hoje serve como divulgação, mas amanhã é um perigo pra posteridade. É preciso que se veja os homens que pesquisaram, os homens que foram lá buscar, viveram com o cantador, conheceram o trovador popular, leram as suas obras. Esses têm autoridade de escrever sobre cantador, mas há gente que nunca viu, nunca foi cantador. Porque eu sempre digo pesquisadores de binóculo: são aqueles, que eu comparo, passam a três mil e quinhentos metros de altura no avião, vê um homem lá embaixo com o bode nas costas, diz que aquilo é uma viola, aquilo é um cantador e vai escrever sobre ele. É o mesmo d’eu, cantador, escrever sobre medicina. O que é que eu vou dizer? Nada. É a mesma coisa de um camarada que nunca, nunca viveu com um cantador pudesse escrever sobre cantador. É um perigo extremo para o futuro porque vai informar coisas sem fundamento.

 

 


[1] O departamento a que faz referência é o Programa de Pesquisa em Literatura Popular (PPLP), fundado na Universidade Federal da Paraiba, no campus localizado em João Pessoa, em 1977, com o objetivo de reunir trabalhos de pesquisadores em Literatura Popular, e de difundir suas mais variadas formas: Literatura de Cordel, Poesia Oral, Tradicional e Conto Popular.

[2] Rodolfo Coelho Cavalcante, poeta popular nascido em Rio Claro (Alagoas), radicado na Bahia desde a década de 1940,  morreu em 1986, deixando valiosa e ampla contribuição para a cultura popular, notadamente para o universo do cordel.

[3] Átila Augusto Freitas de Almeida, conhecido como Átila Almeida, nasceu em 1923, na cidade de Areia – PB, e faleceu em 1991. Era um estudioso da literatura de cordel e o autor, juntamente com José Alves Sobrinho, do Dicionário Biobibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada. Bibliófilo, tinha orgulho de sua coleção pessoal que contava com 17.560 títulos, dos quais alguns eram considerados obras raras. Além disso, possuia 15.967 folhetos de cordel, considerado o maior acervo da América. O conjunto foi adquirido em 2003, pela Universidade Estadual da Paraiba, em Campina Grande, e nesse momento encontra-se na Biblioteca Átila Almeida, aos cuidados de Joseilda de Sousa Diniz, pesquisadora que desenvolve um projeto voltado para a catalogação do referido acervo.

[4] O Teatro de Arena surgiu nos anos 1950, cuja expressão foi cunhada e inicialmente utilizada por Décio de Almeida Prado,  professor da Escola de Arte Dramatica de São Paulo e apresentou como diferencial o barateamento da produção teatral, dentre outros aspectos, propondo experimentações de modo a compor um repertorio e uma estética propria.

[5] Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque, conhecido como Tenório Cavalcanti, nasceu em 1909, em Palmeiras dos Indios, em Alagoas, foi vereador, deputado estadual, deputado federal, candidato a governandor pelo Estado da Guanabara e, dentre as demais atividades que desenvolveu, atuou como conselheiro do presidente João Goulart. Durante o período de 1933 a 1964, manteve-se à frente da política em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, tendo a vida cercada por controvérsias.

[6] Movimento dos oficiais da Aeronautica contra o governo do então presidente Juscelino Kubitscheck, em 1959, em Aragarças, no Estado de Goiás, como uma espécie de retomada do movimento inciado três anos antes, em Jacareacanga, no Pará, ambos resultando no sequestro de aeronaves e no não cumprimento da ordens advindas do Ministro da Aeronáutica, o major-brigadeiro Vasco Alves Seco.

[7] O Edificio Martinelli, localizado em São Paulo e erguido pelo então comendador italiano Giuseppe Martinelli, foi construido para ser, à época, o mais alto prédio da América do Sul. Após a construção ter gerado sérios problemas financeiros ao seu idealizador, foi vendido ao governo italiano e entrou em decadência nos anos 1960 e 1970. Nesse momento de decadência, tornou-se uma favela vertical. Em 1975, na gestão do prefeito Olavo Setubal, houve a  restauração do referido edifício.