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De l’Abc poétique à l’A.B.C de cordel au Brésil:

une forme poétique traditionnelle de “A à Z”

Véronique Le Dü da SILVA-SEMIK. De l’Abc poétique à l’A.B.C de cordel au Brésil: une forme poétique traditionnelle de “A à Z”. Paris: L’Harmattan, 2012, 256p. ISBN: 978-2-296-96064-0

Auríbio Farias Conceição

Universidade Estadual da Paraíba

 

Véronique Le Dü da Silva-Semik é doutora em Línguas e Literaturas românicas e pesquisadora do Centre de Recherches Interdisciplinaires sur le Monde Lusophone em Paris (CRILUS) e do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional (IELT) em Lisboa. Tendo já ensinado na Université Paris Ouest Nanterre La Défense e na Université de Provence (Aix-Marseille), hoje se dedica à epistolografia: estuda os manuais de cartas de amor na literatura portuguesa do fim do século XIX e do começo do século XX. Ela é também especialista nos estudos das formas tradicionais mnemônicas como o abc poético na tradição oral, na tradição escrita e na literatura de cordel portuguesa e brasileira. O seu livro, além de trazer uma indiscutível contribuição ao campo dos estudos literários, outorga ao leitor a oportunidade de efetuar uma aprazível leitura.

Um livro que não se quer largar. Véronique Le Dü da Silva-Semik  desenvolve o texto com uma linguagem por demais envolvente, apesar de ser um texto extremamente acadêmico, no que diz respeito à seriedade e amplitude da pesquisa, bem como aos procedimentos científicos. Traz uma riqueza de informações sobre o Abc poético, e, a cada página, a curiosidade do leitor tende a aumentar pela surpresa que pode vir na página seguinte. E a surpresa vem: pela forma como são esmiuçados os elementos formais, pela visão histórica que oferece desse universo poético, pela análise dos aspectos mnemônicos, pela forma como visita os conceitos de oralidade e escrita os pondo em intenso diálogo, pela relação que discute dessa estética com sua comunidade, pela quantidade e qualidade de fontes coletadas, e tantas outras que aqui não seria o melhor lugar de enumerá-las, visto ser esse um texto breve.

Logo no início, Véronique Le Dü da Silva-Semik introduz o tema apresentando algumas informações sobre a Literatura de cordel, originalmente formada pelos romances, folhetos e ABC de cordel. O leitor, caso desconheça as particularidades dessas formas poéticas, logo conseguirá diferençar o A.B.C. de cordel, dos romances e dos folhetos. Perceberá que o A.B.C. de cordel se distingue das demais formas por ter sua estrutura estrófica organizada pela sequência alfabética de “A a Z”.

No primeiro capítulo, Une Poésie Alphabétique, a autora procura definir o Abc poético e mostrar como o alfabeto ultrapassa o aspecto normativo para se transformar em objeto estético. Através de uma pesquisa rebuscada, Véronique Le Dü da Silva-Semik concede ao leitor a possibilidade de fazer um percurso no tempo, e acompanhar o Abc poético da antiguidade aos nossos dias. E a pesquisa vai revelando não só a presença da estrutura alfabética em escritas antigas como os salmos bíblicos e os poemas marianos da Idade Média, como também as funções que as letras desempenham no interior do poema. Assim a autora vai conduzindo o leitor, para que ele compreenda como a letra cumpre a função de enumeração na relação estética, onde cada palavra do poema é iniciada com a letra seguinte a anterior na ordem do alfabeto. Trata-se de um jogo de letras que serve à memorização, e, ao mesmo tempo, confere ao poema a ideia de completude. E prossegue apresentando a função associativa, que é um procedimento de memorização mais que um jogo. Essa função é exemplificada com um poema anônimo do sec. XV que narra a viagem do rei Afonso V por diversas regiões da Espanha a provar as comidas e bebidas locais (p.33). A partir do poema, Véronique Le Dü da Silva-Semik traça um quadro recapitulativo, através do qual o leitor pode observar com extrema clareza, como se organizam as estrofes, e como para cada letra do alfabeto são associados os nomes de cada região, dos animais que foram servidos na alimentação, dos anfitriões, dos hóspedes, das bebidas degustadas provenientes das frutas e das árvores. Dessa forma a autora ressalta como a memória é organizada do início ao fim do poema. E acrescenta também a função que as letras assumem como anunciadoras da ordem das estrofes. Cada estrofe começa com a letra anunciada e, assim, na sequência do alfabeto as estrofes são organizadas, uma após outra.

Em seguida, Véronique Le Dü da Silva-Semik oferece ao leitor oportunidade de conhecer os modos de desdobramento das estrofes, e as diversas formas de composição dos versos. A autora procura responder a perguntas como: de que formas os poetas organizam as estrofes iniciais dos poemas? Quais são as escolhas mais recorrentes para as estrofes preambulares? Assim como as preambulares, as estrofes conclusivas também são objeto de análise da autora, visto que ambas têm uma especificidade comum, que é a de se dirigirem ao ouvinte/leitor.  Em relação às conclusivas, são indicadas as diversas formas como são anunciadas e os principais elementos que as compõem, tais como o acróstico que serve de assinatura do autor, a dedicatória, a celebração, e outras. Fica claro o caráter de fronteira que assumem as estrofes preambulares e as conclusivas em relação às outras, formadas pelo alfabeto, que desenvolvem o objeto escolhido pelo poeta através da enumeração ou da descrição.

Não menos importante que o jogo das letras com os sentidos é a dialética entre o visual e o sonoro. Definido pela autora como uma estrutura de letras, o Abc poético conserva um vínculo estreito entre a escritura e a oralidade, visto que o Abc, mesmo que escrito pressupõe a voz. E isso é evidente pelos recursos de memorização que são percebidos por meio da lista e sequência de letras, através das escolhas sonoras do poeta, pelo ritmo, pela rima. Também Véronique Le Dü da Silva-Semik salienta como as letras do alfabeto, no Abc, criam um ritmo próprio que se junta ao ritmo do texto. O alfabeto imprime ritmo ao discurso e cria um código de memorização. Exemplos disso são alguns textos paradigmáticos encontrados na Bíblia: Salmos, Lamentações de Jeremias e Provérbios 31:10-31 que impõem sua musicalidade pela forma alfabética.

O segundo capítulo, “Alpha-verbaliser” le Monde, inicialmente, trata mais precisamente da escrita no mundo, das explicações das origens das letras nas culturas mais antigas, em geral, atribuídas a uma divindade, a qual mantém uma relação estreita com o alfabeto. Dentre tantos exemplos citados por Véronique Le Dü da Silva-Semik, é possível destacar a poesia mariana, dedicada à virgem Maria. Esta se inscreve em uma tradição desde o século VI na igreja bizantina, passa pela poesia em língua latina e vernacular, e chega aos dias atuais nos textos coletados na tradição oral no Brasil. Essa tradição é marcada pelo símbolo de completude que constitui a ordem alfabética. A virgem Maria é louvada por meio do Abc de “A a Z” em todo esse tempo de tradição, a qual supre também uma necessidade dos fieis de expressar, em palavras, suas orações.

Além da temática religiosa, o tema do amor também é descrito de “A a Z” em língua vernacular. Nessa temática se inserem as mulheres desejadas, manual de moralidades para as esposas e crítica aos comportamentos passíveis de repreensão por parte das mulheres. Em geral, relacionados ao amor, a mulher é perfeita e o “eu” lírico sofre por não atingir esse amor. Relacionados à moral se parecem a um manual de bom comportamento da mulher ideal, perfeita. Assim de “A a Z” cada letra atribui qualidades à mulher que a torna perfeita. Visões estas, conforme a autora, estereotipadas.

Em seguida, Véronique Le Dü da Silva-Semik traça relações do Abc com acontecimentos históricos.  Os Abc também narram muitas estórias que se referem a eventos históricos, nos quais se louva, ou se homenageia personagens públicos exemplares para a comunidade, ou também podem desenvolver poeticamente um episódio (histórico ou imaginário) no qual há dois lados que se opõem. São frequentes nos Abc os relatos de batalhas, lamentações dos mortos após os combates, bem como eventos históricos narrados de maneira crítica e polêmica, como bem o exemplificam poemas do século XIV citados no livro. A história é uma rica fonte temática para os compositores do cordel. No Brasil, ela é fundamental na criação de um corpus na tradição oral e na literatura de cordel.

O último aspecto abordado por Véronique Le Dü da Silva-Semik neste precioso capítulo é a poesia e o Abc como objeto de prazer e de instrução. São as lições de moral e de vida que o Abc assume dentro de uma perspectiva didática. Alguns podem servir como guia prático, como fontes de conteúdo moral, louvor de homens e mulheres célebres, ou instruções sobre certos assuntos. Como exemplos são citados os Salmos para instruir os religiosos; o Abecedário Moral (manuscrito de 1826 encontrado em cadernos manuscritos de dois religiosos do Convento da Esperança e do Convento dos Flamengos em Lisboa); ABC da Umbanda; e os que instruem a comunidade sobre sua cultura.

No terceiro capítulo, L’Abc poetique au Brésil, Véronique Le Dü da Silva-Semik discute a semelhança dos Abc poéticos feitos no Brasil com os feitos na Europa, em relação aos aspectos formais, temáticos e ao propósito didático. São descritos os elementos formais mais frequentes, tais como os tipos de versos, de estrofes, bem como os principais eixos temáticos: históricos, biográficos, amorosos, problemas sociais. A apresentação da literatura oral agrupa poemas dos séculos XIX e XX. São poemas transmitidos pela via do falar/ouvir, já que a grande parte da população não sabia ler nem escrever. Esta poesia assume a forma tanto de louvação como de desafio ─ duelo de palavras. É uma tradição muito frequente no nordeste do Brasil, nos estados do Maranhão, Pernambuco e Bahia.

A pesquisa sobre os Abc poéticos coletados no Brasil revela também como algumas letras estão sempre associadas à mesma palavra em diversos poemas, formando mesmo uma tradição de fácil memorização.  A autora mostra como ao fim do século XIX, na região nordeste do Brasil, surgiu uma produção poética, através de textos impressos, chamados “folhetos de feira”. Eram textos que versavam sobre diversas temáticas, para serem cantados ou lidos. Hoje essa literatura de cordel está disseminada por quase todo o país, possui suas próprias editorações, e tem um público cativo formado pelas comunidades apreciadoras de suas próprias produções intelectuais, turísticas.    Através da leitura desse livro, o leitor também poderá conhecer como são preparados os impressos da literatura de cordel, em que formas poéticas são organizados, como e em que lugares são vendidos.

Digno de nota também é a forma como a autora ressalta a representação do cotidiano feita por esta literatura. Não só o cotidiano, mas também a cultura popular do mundo rural através das histórias que narra. Muitos poetas populares assumem, em suas obras, certo tom pedagógico com o seu público. O tom educativo aparece mais no ABC que nos folhetos de cordel, uma vez que, nestes, a estrutura favorece mais as narrativas, enquanto, naqueles, a estrutura de A a Z se adequa melhor a ensinamentos, e se parecem, por vezes, a um “manual prático”. Isso porque a estrutura do ABC melhor é desenvolvida através da descrição e da enumeração. Para reforçar essas afirmações a autora descreve vida e obra de nomes como Paulo Nunes Batista, Rodolfo Coelho Cavalcante, exemplifica e até explica com a obra deles, a razão de alguns poetas escreverem apenas um ABC e outros, como é o caso dos dois, se tornarem especialistas em ABC. E para finalizar esse capítulo, Véronique Le Dü da Silva-Semik aponta a aproximação da literatura de cordel tanto com o poema escrito como com as composições orais. E o ABC tem um lugar tanto quanto uma forma na memória comum dessa literatura. Há um trânsito da memória para a escrita do cordel, como da escrita do cordel para a memória.

Um belo estudo feito sobre poemas que se apresentam com várias versões permite a autora afirmar que o Abc poético se mantém vivo onde a tradição se exprime pela comunidade e para a comunidade. Prova de que há uma memória comum no que se refere tanto ao estilo como à temática. Embora a pesquisa revele também que é possível o Abc pertencer a contextos culturais heterogêneos, como por exemplo, É um A.B.C. que fez um homem da Arábia fugindo-lhe uma mulher com quem tratava depois de andar amancebado 10 anos em uma madrugada. Afirma a autora ser esse um manuscrito do século XVIII inédito, encontrado na Biblioteca Nacional de Lisboa durante sua pesquisa, o qual tem uma versão publicada no século XIX por um pedagogo que o escolhera com o objetivo de alfabetizar crianças burguesas no Rio de janeiro.

A pesquisa ampla e consistente de Véronique Le Dü da Silva-Semik resultou em um livro admirável. Em todo o trabalho são inúmeras as notas explicativas e também aquelas acrescentadoras de informações, em virtude da originalidade da investigação. O leitor que tiver interesse de saber mais sobre os temas tratados no livro encontrará farto material bem específico relacionado ao tópico desejado. Um livro admirável também porque trata o universo poético com toda a poesia que este exige. Um livro que contribui sobremaneira, para iluminar o leitor acerca das especificidades da literatura de cordel, ao mesmo tempo em que lhe ressaltam diversos aspectos admirados na poesia universal. Inúmeros são os textos poéticos apresentados no livro, nos quais o leitor pode se deliciar com a leitura e perceber melhor os aspectos mnemônicos, sonoros, temáticos, e a relação da oralidade com a escrita.